terça-feira, 30 de junho de 2009

Quid me persequeris?

Considera il grand conforto, che tu devi cavare da queste parole di fede, e però incontrastabili. Christus Jesus venit in hunc Mundum peccatores salvos facere. Veio a este mundo, não nasceu, existia antes; veio de um lugar de felicidade a este Mundo. Considera, pois, com quanta humildade falou o Apóstolo de si quando disse que era o primeiro dos pecadores. Pensava sempre no seu pecado, o considerava, o conhecia, não comparava ao dos outros e assim pouco a pouco veio a fazer-se como um, o qual tendo uma dor veementíssima, ou de podagra, ou de pedra, estima que não exista dor semelhante, por que da sua tem scienza sperimentale, das outras uma specie astratta. Queres te estimar o pior também? Odeie a ti mesmo tanto, como os Santos se odiavam a si mesmos. Considera que o Apóstolo dizia aquilo que fui, mas aquilo que sou. Considera como o Apóstolo acusou a si, para animar todo o que esperasse em Cristo. Como disse que Cristo quis mostrar misericórdia ao salvar o pior dos pecadores. Considera que se o Senhor mostra paciência contigo, não menos está obrigado. Che favor dunque ti fa, mentre singolarmente egli vuole mostrala in te? Questo solo ti si bastante a confonderti; sicchè dichi di vero cuore: [Quanto a mim, louvá-lo-ei na terra do meu cativeiro, porque manifestou sua majestade sobre um povo criminoso. Tobias 13, 7]

(gennaio xxv, I Timóteo 1, 18)

domingo, 28 de junho de 2009

A cest mot adormitz si fo

Lendo alguns capítulos da breve introdução de Robert Kane aos problemas do livre arbítrio, A contemporary introduction to free will, editada em Nova York no ano de 2005, voltei a me fascinar com a notável e recorrente ausência da análise do problema da consciência sobre os dilemas religiosos e filosóficos do livre arbítrio. A consideração do determinismo, do compatibilismo e do livre arbítrio sempre parte de um princípio ultra-realista. Como se estivéssemos em um ponto de vista externo e virtual, poderíamos sempre compreender sem ambiguidade se nossas ações são determinadas, completamente livres ou parcialmente livres.

Um behaviorismo radical e a utopia de Walden Two podem eliminar, por definição, qualquer elemento ligado à reflexão interna no julgamento do curso das ações humanas e a pertinência da noção de uma liberdade interior. Entretanto, nos dois casos deixariam então de ser relevantes para a consideração pragmática da existência humana, cuja especificidade é criada justamente pela existência de um domínio interno, capaz de refletir sobre o sentido de nossas ações. É inútil descartar a noção de uma liberdade interior, mesmo considerando-a como uma ilusão: seria preciso explicar qual a natureza e qual a função dessa ilusão. O problema filosófico relevante é criado precisamente pela existência da sensação de liberdade interior, mesmo diante da evidência cabal de que a ordem do Mundo obedece a leis naturais.

A existência de Deus e de um Deus com uma agenda moral positiva acrescenta complexidades conhecidas a esses dilemas. Um deles, equacionado de forma paradoxal por Paolo, sustentado no texto de Oséias é: quando agimos - para o bem, para a salvação, supostamente - quanto de nossa ação é eficiente por nosso mérito e quanto por intervenção divina? É surpreendente notar que sua análise se baseia no decisivo "diferencial de informação" entre o Homem e Deus no que toca às matérias do livre arbítrio.

Nunca saberemos se fizemos o bem: não conhecemos a cadeia cósmica dos eventos para saber se nosso ato nela contará de forma positiva ou negativa. O homem que amparamos hoje pode ser o assassino de amanhã. Alguém ajudou Adolf Hitler em seus dias de miséria e privação; alguém pode ter favorecido corretamente um aluno que ficou com a bolsa de estudos do homem que algunas anos mais tarde descobriria a cura do câncer. O bem que fazemos é um gesto feito na mais completa incerteza sobre seu real impacto na ordem cósmica dos eventos.

Uma definição objetiva do bem, do bem fazer, por outro lado, seria necessariamente farisaica, extensiva apenas ao ato concreto, pequeno, circunscrito à minha pessoa. Só uma coisa poderia salvá-lo como um gesto do bem: a intenção sincera, interna, pessoal. Todos estão a par, contudo, dos paradoxos da intenção, inacessível ao Outro.

A rigor, portanto, apenas a mente insondável de Deus poderia julgar qual o peso exato de nossos atos na ordem cósmica dos eventos. Se nossas obras bastam para nos salvar, a rigor, só Deus pode saber. E também apenas mente insondável de Deus conhece a real intenção de nossas mentes quando agimos. Quanto ao Homem, resta a observação do preceito de Oséias: guarda a beneficência e o juízo e em teu Deus espera sempre.

Esse tipo de incerteza quanto à descrição da realidade - à correta relação entre fatos e representações - é certamente incômodo. Em 1935, o volume 47 do Physical Review, trazia a conhecida nota assinada por Einstein, Podolsky e Rosen, condenando a interpretação corrente da física quântica por insistir na medição de grandezas que poderia, ela mesma, alterar um sistema físico. Diz o texto:

"Em uma teoria completa existe um elemento correspondente a cada elemento da realidade. Uma condição suficiente para a realidade de uma quantidade física é a possibilidade de medi-la com precisão, sem perturbar o sistema. Na mecânica quântica, no caso de duas quantidades físicas descritas por operadores não comutativos, o conhecimento de um impede o conhecimento do outro. Então, ou (1) a descrição da realidade dada pela função de onda da mecânica quântica não é completa ou (2) essas duas quantidades não podem ser reais ao mesmo tempo. A consideração do problema de fazer predições concernentes a um sistema com base em medidas feitas em outro sistema com o qual interagiu previamente leva ao resultado de que se (1) é falso, (2) também é falso. Assim, é-se levado a concluir que a descrição da realidade como oferecida por uma função de onda não é completa."

Nos termos do dilema da salvação ou da mera prática do bem: se tenho completo conhecimento do efeito de meus atos na ordem cósmica dos eventos, minha intenção moral é irrelevante como determinante de minhas ações. Posso ter escolhido ser bom pelo mais negro egoísmo pessoal: sei antecipadamente quais as ações que me levarão necessariamente ao céu. Se tenho controle completo sobre a pureza de minhas intenções, o resultado prático de minhas ações seria irrelevante. Deus estaria obrigado a me salvar. Atos e intenções, contudo, existem em um estado de entanglement. Apenas o observador do experimento é que pode "decidir" o que aconteceu ou porque alguém foi salvo. Apenas Deus está qualificado como observador capaz de decidir entre os infinitos estados quânticos que compõem a realidade.

Curiosamente, a espera recomendada por Oséias e sublinhada por Paolo é a mesma espera requerida por Erwin Shröedinger em sua resposta a Einstein e publicada em Naturwissenchften em novembro de 1935 (a tradução em inglês é do Proceedings of the American Philosophical Society, 124, 323-38.):

"One can even set up quite ridiculous cases. A cat is penned up in a steel chamber, along with the following device (which must be secured against direct interference by the cat): in a Geiger counter there is a tiny bit of radioactive substance, so small, that perhaps in the course of the hour one of the atoms decays, but also, with equal probability, perhaps none; if it happens, the counter tube discharges and through a relay releases a hammer which shatters a small flask of hydrocyanic acid. If one has left this entire system to itself for an hour, one would say that the cat still lives if meanwhile no atom has decayed. The psi-function of the entire system would express this by having in it the living and dead cat (pardon the expression) mixed or smeared out in equal parts."

Não é necessário ir muito além na história do gato de Schroedinger, o ponto que nos interessa é que não sabemos, rigorosamente, se o cato está vivo ou morto enquanto essa hora passa. Só o observador pode produzir o colapso da função de onda em um de seus estados.

Paolo está dizendo que ninguém pode ser o juiz de sua própria função de onda. Guarda a Razão e a Intenção, mas espera em Deus.



Imagem: O gato de Schroedinger em seus dois estados.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Qui seminat, verbum seminat

Considera, che quando nella Divina Scrittura si congiugono insieme questi due nomi, Misericordium, et Judicium, si suole per essi intendere qualunque opera di virtù. Age, pois, por obrigação ou superrogação. Não basta ser observador negligente, mas observador zeloso. Queres erradicar o ódio do coração? Pratica atos de amor. Queres dar a cada um que é seu? Vence o afeto ao dinheiro. Queres manter o coração longe da impureza? Acautela-te. Assim podes endireitar a planta que cresce à esquerda. Não espera, porém, do Juízo e da Misericórdia, guarda-os, mas espera em Deus. Esta é, pois, a verdadeira regra. Usare ogni diligenza, come se niente havessi a sperar de Dio, e sperar poi tutto in Dio, como se niente affato havessi usato di diligenza. E sempre, não apenas alguma vez, como está em Oséias 12, 6. Não fazes como disse Salomão? In te speraverunt Patres nostri, speraverunt et liberasti eos. Não bastou somente esperar para ser liberado, foi necessário voltar a esperar.

(gennaio xxiv, Oséias 12, 6)

quar d'aur e d'argen es totz ples

O fato de que o ascetismo cristão, a consciente aceitação do adiamento dos prazeres e das fruições, a necessidade de ocupar todo o seu tempo com o penar e a labuta nesse mundo servissem de justificação para a poupança capitalista e para o lucro privado representa uma das mais espantosas ironias da história. Escritores mais sutis denunciaram essa conexão como uma mistificação ideológica para encobrir rapinas. Supõem, naturalmente, que rapinas são coisas fáceis de fazer, que não exigem maiores sacrifícios pessoais.


Imagem: Richard Baxter (1615-1691). Christian Directory. Practical Works of Richard Baxter. volume iv. Londres, 1830. pág 236.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

ego enin sum senex

Considera, che per molto, che sia ciò, che tu patisci, non ti hai di disanimare, perchè patisci, ma a tempo; usque in tempus. Tudo terminará: as tentações, as asperezas, as adversidades, as humilhações. Considera que não deves gozar agora, pois que não é esse o seu tempo. Como as árvores no inverno, estará nu e coberto de neve; no verão, frondoso, florido, frutífero. Considera como seria tolo florir no inverno. Aqui não estás para gozar, mas para sofrer.(O homem paciente esperará até um determinado tempo, após o qual a alegria lhe será restituída) O Senhor tanto te renderá de deleite quanto houveres aqui sacrificado. Talvez não te fies dele? Não há que duvidar: é um devedor fiel. Anzi, o quanto egli ti renderà più di quello, che non gli hai datto! Ti basti udire, che ti dará se medesimo? Ego merces tua magna nimis.

(gennaio xxiii, Eclesiástico 1, 29)

quarta-feira, 24 de junho de 2009

E que dirai eu plus ab tan?

Não é necessário insistir sobre os paradoxos da condenação eterna e a duração do inferno já foi examinada com rigor por um célebre escritor argentino. Ao menos Orígenes descreu da punição sem fim como obra de um Deus do amor. O Judaísmo, por conta de sua longa convivência com o Senhor, prefere enfatizar o prêmio dos eleitos e dos justos. Está em Daniel 12, 2: "E muitos do que dormem no pó da Terra ressuscitarão, uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno". Há uma sugestão de que estar longe de Deus é castigo suficiente. A prédica de Paolo merece, pois, maior atenção por sua descrição detalhada dos suplícios e sofrimentos do Inferno, que, como tudo, teriam sido criados por Deus.

Chagas, úlceras, doenças são materiais comuns na Escritura, sinais da punição divina ainda na Terra. Jó limpava suas feridas com um caco de telha (Jó 2, 8). Já outras formas de tortura, como afogamentos e o uso do fogo ou da água fervente, fazem parte do arsenal punitivo do Antigo Regime, cujos instrumentos de tortura compõem hoje as mais variadas fantasias cinematográficas. As punições medievais, contudo, são muito recentes em termos históricos, datam dos inícios da organização do Estado na Europa. Não podem estar na origem das sugestões estranhamente sádicas dos primeiros textos cristãos ou das terríveis sugestões contidas nos Evangelhos: E o Diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e de enxofre, onde está a Besta e o Falso Profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre (Apocalipse 20, 1) E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo (Apocalipse 20, 15).

Parece existir apenas uma conexão contemporânea possível com as torturas eternas infligidas aos condenados por Deus: a execução dos condenados à morte nos anfiteatros romanos. O texto de Paolo traz à mente os bestiarii descritos por Roland Auguet em Cruauté et Civilisation. Les Jeux Romans. Eles eram os condenados a morte pelas cortes de justiça e literalmente oferecidos às feras. Isso quando não eram submetidos a torturas-espetáculo: morrer como Hércules, com uma túnica flamejante, por exemplo.

Como lembra Auguet, essas execuções, sem glória, sem combate, amparadas pela lei, eram oferecidas como intermezzo e não despertavam maior interesse do público. Por isso, aliás, os crescentes recursos teatrais empregados nesse tipo de execução.

Para a opinião moderna, o espetáculo de um condenado à morte pelo sistema judicial ordinário sendo executado com requintes cenográficos de tortura é certamente muito mais chocante e bizarro do que o combate de gladiadores. Talvez nada de mais assustador existisse também para os homems do primeiro século que, quando buscavam um exemplo do castigo exemplar que esperava os condenados por Deus, apenas apontavam para o espetáculo brutal da lei e do anfiteatro romano.

Paolo certamente não estava consciente da possibilidade de tal conexão, nem do caráter problemático da associação entre Deus e tais castigos e torturas romanas.


Bestiarii. Mosaico da cidade de Zliten, Museu de Trípoli.

terça-feira, 23 de junho de 2009

non potestis Deo servire, et mammonae.

Considera quanto à strana cosa che Dio con sì gran potenza ti dia sì poco timore. Poderia te pender pelos cabelos em um poço cheio de escorpiões, de serpentes, de dragões horríveis, com a boca aberta, serias então soberbo? E como te voltas contra teu Deus! Vais cair no barátro do Inferno e não o temes; és daqueles que O desafia. Considera o que é a Geena, um poço de fogo, no íntimo da Terra, é como a Cloaca Maxima, para onde correm todas as sujeiras do Mundo, poço fétido, poço obscuro, poço hórrido, onde choverão os danados no dia do Juízo. E cada um dos danados pesará como chumbo, uma massa de corpos, centenas, milhares, milhões sem poder sair um só momento, imóveis, cheios de vesículas, de úlceras. Quando tu hai la podagra temi in veder uno che viene alla volta tua e subito cominci a gridare, che non si acosti. Pensa então qual será a dor. Esta é a Geena, um vale na Judéia, fechado, onde se acendiam os fogos para sacrificar ao Ídolo Baal. Considera de novo, que sobre este poço Deus te tem pelos cabelos: não o temes? Pois para isso foi dado o Temor: compreender a necessidade de evitar o pecado e treinar a vontade como um cavalo ao freio. Dois são os temores: o temor da culpa pela pena e o temor da pena ainda que pela culpa. O temor da pena é o temor do servo, menos digno; o temor da culpa é o temor do filho, temor não apenas bom, ma santo e però tanto più questo in te crescerà, quanto crescerà più quell'amore, che a Dio te unisce.

(gennaio, xxii, Lucas 12, 5)

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Was Gott tut, das ist wohlgetan

Música para a submissão à vontade de Deus. Poema de Samuel Rodigast (1649-1708) e harmonização da melodia coral de Werner Fabricius (1633-1679) por J.S. Bach:

Was Gott tut, das ist wohlgetan,
Dabei will ich verbleiben.
Es mag mich auf die rauhe Bahn
Not, Tod und Elend treiben,
So wird Gott mich
Ganz väterlich
In seinen Armen halten;
Drum lass ich ihn nur walten.

O que Deus faz, está bem feito,
E nisso hei de permanecer.
Pode me fazer a dura Estrada
Da Tristeza, Morte e Pobreza provar,
Mas Deus há de
Como um Pai
Em seus braços me guardar;
Portanto a ele só deixo comandar.

Sexto número. BWV 99.

domingo, 21 de junho de 2009

Fili, vade hodie, operare in vinea mea

Considera, che vuol dire, vivere in fide, vuol dire che tu ti fidi di Giesù Cristo, assicurandosi, che mentre tu ti lasci da lui governare, tutte le cose andran bene. Desolações, infirmidades, ignomínias, mendacidades: deixe tudo nos braços do Senhor. Ele que trouxe a si mesmo para salvar a ti. Morreu na Cruz por ti, por causa de ti. Deves, portanto, como ele se deu, dar-te a ele integralmente, uma vítima da obediência, sem curar-se de saber como andam as coisas, mas querendo viver na Fé. Così appunto vive un bambino su 'l sen materno.

(gennaio xxi, Gálatas 2, 20)

sábado, 20 de junho de 2009

d'onor, de pres ni de plazer

A condenação evangélica da riqueza não é sustentada, hoje, nem mesmo pela doutrina oficial da Igreja. Certamente dos pobres é o reino dos Céus, mas as palavras duras e ameaçadoras do Evangelho segundo Lucas são ouvidas apenas nos conventículos mais radicais da Teologia da Libertação. É notável a transformação teológica da riqueza pessoal em sinal de bendição divina e prêmio pelo exercício das virtudes da modéstia e da previdência. Esse fenômeno, porém, foi devidamente exposto em um livro célebre: não é necessário repetir seus argumentos, cabe registrar o fato. Nesse ponto, o Evangelho talvez não fosse mais completamente compreensível.

Em favor da condenação que há em Lucas, revivida por Paolo em termos igualmente ameaçadores, pode-se afirmar que, na Antiguidade, a riqueza pessoal tinha outras características. A sociedade era infinitamente mais pobre e o número de ricos igualmente menor. Os ricos geralmente conquistavam suas fortunas em direta conexão com o Estado: eram crias dos tiranos, beneficiados por transferência de impostos e, portanto, toda riqueza era injusta. Por fim, comparados aos ricos de hoje, os ricos do Evangelho eram infinitamente pobres. Sem finança desenvolvida, não há como acumular riqueza em grande escala. Ser rico, muito mais do que hoje, era exercer um estilo de vida: luxo ostentatório, comida, bebida, sexo, jóias, roupas. Os ricos de Roma ou da Palestina seriam hoje considerados arrivistas vulgares: um público ideal para o consumo de 'marcas sofisticadas' tão ao gosto das altas classes médias. Os ricos da Revolução Industrial até o presente, por sua vez, seriam os geradores de emprego e investimento da propaganda governamental. A condenação de seu status moral seria antiquada e contraproducente.

É surpreendente notar que mesmo essa visão secular e otimista é desgastada pelas realidades de uma economia capitalista, suas seguidas crises, sua contínua administração por autoridades políticas. Examinemos, ao acaso, um breve texto de John Maynard Keynes, no capítulo 24 de sua teoria geral do emprego, juros e moeda, onde apresenta várias notas conclusivas sobre a filosofia social sugerida por suas idéias econômicas. O último parágrafo da primeira seção traz considerações pertinentes a esse assunto:

“De minha parte, acredito que existe justificação social e psicológica para significantes desigualdades de renda e riqueza, mas não com as disparidades hoje existentes. Há valiosas atividades humanas que requerem o desejo de fazer dinheiro e o ambiente de apropriação privada para a sua fruição. Além disso, perigosas proclividades humanas podem ser canalizadas por relativamente inofensivos condutos pela existência de oportunidades de fazer dinheiro e fortuna, proclividades que, não satisfeitas desse modo, podem encontrar escape na crueldade, na imprudente busca do poder pessoal e de autoridade e outras formas de auto engrandecimento. É melhor que o homem tiranize sua conta no banco que seus concidadãos; e ainda que o primeiro seja denunciado como um caminho para o segundo, por vezes representa ao menos uma alternativa. Mas não é necessário para o estímulo dessas atividades e a satisfação dessas proclividades que o jogo seja conduzido com tal cacife. Valores menores em jogo serviriam ao mesmo propósito assim que os jogadores a eles se acostumassem. A tarefa de transformar a natureza humana não deve ser confundida com a tarefa de administrá-la. Ainda que na comunidade ideal os homens podem ser inspirados ou instruídos a não ter interesse no que está em jogo, seria decerto sábio e prudente permitir que o jogo seja jogado, sujeito a regras e limitações, enquanto o homem médio ou mesmo uma significante parte da comunidade é, de fato, fortemente adepta da paixão de fazer dinheiro”.

Escrito na década de 1930, o parágrafo apresenta o rico, o homem produzido pelo instinto de enriquecimento, como uma mera espécie economicamente útil, como as abelhas, os bois ou as cabras. O rico deve ser administrado, inclusive na dimensão de sua riqueza, se ela é conveniente ou não para a boa ordem social. Há poucos anos, o Estado russo, por exemplo, decidiu que vários de seus ricos cidadãos haviam extrapolado esses limites e os condenou à prisão. Keynes sugere que a possibilidade de ser rico é quase uma função social, um seguro contra certo tipo de personalidade, uma canal para tendências humanas infelizmente ainda persistentes.

Tais ricos não estariam mais, portanto, tão longe assim dos personagens folclóricos da Antiguidade: criaturas toleradas pelo Estado por razões pragmáticas e presos à mitologia do consumo, ao auto engrandecimento e a fantasias. Inúteis, no fundo, pois todos ficamos doentes, velhos e morremos. Ou padecemos do suplício, caso o Imperador Tibério assim o decida.

Por isso, sugere Paolo, é melhor nos acostumar à tribulação, pois que essa é nossa realidade. Os ricos apenas se iludem, por um tempo. Por isso disse Jesus, ai dos ricos!

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Vae vobis Divitibus

Considera, che parabola terribilíssima? Non dice Vae perchè rubate, perchè angariate, perchè assassinate, perchè fate infinite fraude: ma solo perchè havere la vostra consolazione. Qual é a consolação dos ricos? É poder fazer dos outros a própria vontade. Ó que alto mal! por que tanto há de julgar-se, o fazer a própria vontade? Considera que ter a própria consolação é um péssimo sinal, porque é sinal de não tê-la no outro mundo. Talvez seja melhor sofrer com cuidados, amarguras que ter tudo no mundo. Mas o Vae não somento denota um mal, não apenas o deplora, o ameaça, mas o prediz. Tudo o que o formidável Vae pode significar nas Escrituras. Considera que não são todos os pobres ditos afortunados, mas os pobres em espírito. Tu quanto a te, ama pìù tosto di non haver richezze, che d'haverle, e stanne staccato. O primeiro é fácil; o segundo miraculoso.

(gennaio xx, Lucas 6, 24)

quarta-feira, 17 de junho de 2009

con eu li posca far guirensa?


Suponhamos que você não acredite no Deus de Abraão e Jacó. Que Jesus não seja o filho de Deus de Abraão. A história da Paixão perde sua dimensão cósmica, mas seus fatos perduram. Jesus de Nazaré é um personagem histórico. Mesmo que seja um símbolo, mesmo que represente a soma de várias histórias, os homens que escreveram sobre Jesus de Nazaré o puseram na História, em uma cena com Herodes, com Pôncio Pilatos, um obscuro administrador romano. Suponhamos que você não acredite exatamente na história narrada pelos Evangelhos. Seus fatos, ainda assim, perdurariam. Sabemos que governos tirânicos executam brutalmente seus dissidentes, hoje e no passado. Sabemos que seus prisioneiros são torturados. Sabemos que homens morrem calmamente na defesa de seus ideais, no campo de batalha ou nas masmorras. Nesse exato instante, alguém morre brutalmente em defesa da liberdade, do bem comum, da igualdade. A história de Jesus nada tem de absurdo, nem de inverossímel. A Paixão seria, assim, a história de um homem que curou doentes, expulsou vendilhões da casa de Deus, prometeu um reino que não era desse mundo, não faz o mal, não promoveu a revolta política, suportou a tortura e a morte. Uma morte que inspirou fanatismos assassinos, arte, música, vocações generosas, o melhor e o pior. Suponhamos que você não acredita em Deus: ainda assim você pode meditar ao pé da Cristo Crucificado. A Cruz, para os seguidores de Cristo, é um símbolo de salvação; para os demais, esse sombrio instrumento romano de tortura, é um símbolo do destino humano. Em qualquer caso, mostra que a vida é sacrifício em nome de algo; um sacrifício misterioso quando é em nome do Bem, quando a vida é entregue sem interesse, uma dádiva livre para os demais. Em 1863, Ernest Renan, não mais um dos crentes, escreveu ao final da Vida de Jesus: "Plaçons donc au plus haut sommet de la grandeur humaine la personne de Jésus. Ne nous laissons pas égarer par de défiances exagérées en présence d'une legende que nous tient toujours dans un monde surhumain" (edição de 1895, pág 465).

Imagem: Ernest Renan.

thesauro abscondito in agro

Considera, che non ti devi mai saziar di pensare a Cristo Crocifisso, perchè ciò fará il conforto a tutti i tuoi mali. Mas não digas cogitate, antes recogitate, porque este deve ser o seu pensar mais assíduo. É preciso meditar (i) quem sofre a paixão, o Rei da Glória; (ii) por quem sofre, os pecadores; (iii) o que sofre, em qualquer gênero. Um soldado, diz Paolo, ganhar o maior ânimo em ver seu Rei sob fadigas e considera quão fácil é abandonar a servidão do Senhor. Considera a confusão em que cai sua vida ao pé do Crucifixo. Ah! quanto diz de verdade o Apóstolo quando exclama: não apenas não queres espargir o sangue, mas nem mesmo uma pequena perda de reputação, de sanidade, nem mesmo de uma vã satisfação. Há que contrastar, há que combater, até a guerra infinita porque se trata de muito: se trata de não admitir o pecado, per cui distruggere ha voluto Christo versare tutto il suo sangue sino all'ultima stilla.

(gennaio xix, Hebreus 12, 3)

terça-feira, 16 de junho de 2009

moutas res que non sap sebre


Sobre perder o gosto das coisas divinas, escreve Robert Gilpin, Daemonologia sacra or a Treatise of Satan's Temptations, Londres, 1677, capítulo 17:


segunda-feira, 15 de junho de 2009

in te complacui mihi

Considera che questa diversa Mensa è la diversa qualità dei diletti che da Dio e che danno i Demonij. Aquelas, que dá Deus vêm de um Senhor que ama suas criaturas visceralíssimamente. Aquelas que dão os demônios, vêm do inimigo. Elege, pois, a Mesa de Deus, onde o alimento pode ser amargo, mas sempre é são. Considera a cegueira dos mortais que abandonam a mesa de Deus não esperando senão dar pasto ao fausto, ao interesse, à ira, à inveja, a qualquer afeição desregulada. Se por muito tempo não provas deleite algum nas coisas espirituais, em pensar em Deus, em operar por Deus, mas più tosto pruovi una svogliataggine fomma, sta bene atento: qualche Demonio ti pasce.

(gennaio, xviii, I Coríntios 10, 21)

domingo, 14 de junho de 2009

ni la vol neis trobar en via

Essas considerações razóaveis de Santo Antônio, um personagem respeitado mesmo pelas páginas ácidas de Gibbon sobre o monasticismo oriental, não parecem compatíveis com o profundo impacto de sua história no mundo das artes. As Tentações de Santo Antônio são o tema de geniais criações de artistas do porte de Bosch, Grunewald, passando por Jacques Callot e Salvador Dalí, até chegar a vários contemporâneos. Sem falar no romance filosófico de Flaubert, origem de tantas outras fascinações. Os monstros, aberrações e provações oferecidos à contemplação de um observador humano, criados desde o século XIV, povoam livremente as telas de cinema. Há razões interessantes para o poder dessa história e elas transparecem dos textos apresentados abaixo.

Vida de Antônio, parágrafos 51, 52 e 53:

51. Então ele encontrou-se sozinho no interior da montanha, consumindo seu tempo em oração e disciplina. E os irmãos que o serviam perguntaram se poderiam vir a cada mês trazer olivas, legumes e óleo, posto que era já um velho homem. Lá ele passou sua vida e suportou tais grandes lutas. “Não contra carne e sangue” (Efésios, vi, 12), como está escrito, mas contra demônios opositores, como aprendemos dos que o visitavam. Pois eram ouvidos tumultos, muitas vozes e o rumor de armas. À noite, eles viam a montanha cheia de bestas selvagens e ele lutando como se na presença de seres visíveis e orando contra eles. E aqueles que vieram a ele, ele encorajava, enquanto ajoelhado contendia e pedia ao Senhor. Certamente esta era uma coisa maravilhosa que um homem, sozinho nesse deserto, não temesse nem os demônios que se erguiam contra ele, nem a fereza das bestas de quatro patas e coisas assustadoras, pois elas eram tantas. Mas em verdade, como está escrito, ‘Ele acreditou no Senhor como o Monte Sião (Salmo cxxv. 1)’ com uma mente inabalável e imperturbada; e assim antes os demônios dele fugiam e as bestas bravias, como está escrito ‘guarda a paz com ele’ (Jô, v.23)

52. O Diabo, portanto, como diz Davi nos Salmos (xxxv.16) observou Antônio e cravou nele os seus dentes. Mas Antônio foi consolado pelo Salvador e continuou ileso diante de suas astúcias e seus instrumentos. Enquanto guardava a noite, o Diabo enviou bestas contra ele e quase todas as hyenas do deserto saíram de seus covis e o cercaram e ele estava no seu meio, enquanto todas tentavam mordê-lo. Vendo que eram um truque do inimigo ele disse a todas: ‘se tivésseis recebido poder contra mim, estava pronto a ser devorado por vós; mas fostes enviadas pelos demônios, ide-vos, pois sou um servo de Cristo’. Quando Antônio falou, elas fugiram, dispersas pela palavra como se pelo açoite.

53. Alguns dias mais tarde, enquanto trabalhava (poise ele cuidava em trabalhar duramente) alguém postou-se à porta e puxou a placa onde trabalhava, pois costumava tecer cestos, que dava aos que vinham em troca do traziam. Erguendo-se viu uma besta como um homem até a cintura, mas tendo as pernas e os pés como os de um asno. Antônio persignou-se e disse: ‘sou um servo de Cristo. Se fostes enviado contra mim, olhai, aqui estou’. Mas a besta junto com os espíritos malignos fugiu, com tal pressa que caiu e morreu. E a morte da Besta foi a queda dos Demônios. Pois eles lutaram por todos os modos para tirar Antônio do deserto e não foram capazes.

A curiosidade e a fascinação humanas diante do maravilhoso, a imaginação induzida pelo terror são tentações que nenhum grande artista consegue evitar. Uma aparição, uma visão é um chamamento ao combate, um avanço na direção do desconhecido. Talvez seja esse o segredo da luta de Antônio contra os seus demônios.


(Imagem: A Tentação de Santo Antônio. Martin Schongauer. c. 1480)

les sieus cantars plac mout a toz

A explicação religiosa de visões, vozes e outras alucinações pode ser bem menos paradoxal e complexa do que as explicações científicas e seculares. A crença em Deus oferece uma trama que parece, à primeira vista, fantasiosa, mas termina oferecendo uma notável terapia racional.

O primeiro e mais brilhante teórico das aparições é Santo Antônio, ao menos o Santo Antônio descrito na Vida composta por Santo Atanásio. Em um longo discurso inserido no texto, uma instrução dada a seus companheiros de monasticismo, Santo Antônio oferece, em primeiro lugar, uma taxonomia das manifestações problemáticas das forças do mal: geram maus pensamentos, produzem imagens de mulheres, de bestas selvagens, seres assustadores, corpos gigantescos, tropas de soldados, podem se mostrar a grandes alturas, podem profetizar e prever o futuro imediato (Antônio explica o porquê, sem negar o fato), imitam a voz humana e o som da harpa, repetem em eco o que é lido, acordam os monges à noite, invocando-os à oração, assumem a aparência de monges e de homens santos, riem, fazem ruídos, assobiam, cantam e recitam a escritura, aparecem como soldados armados, cavalos, bestas, carregam falsos lumes à noite, etc.

Não é difícil concluir que Santo Antônio produziu uma notável redução epistemológica: qualquer sinal sensorial pode ser uma manifestação das potências do mal. O conteúdo das aparições, vozes, visões deve ser analisado com outros critérios.

Um primeiro é sua brevidade. Eles geralmente "aparecem e somem". Um segundo é sua falta de resistência diante da descrença. Se não têm atenção, "choram e lamentam". São como "atores no palco, usando suas formas para assustar as crianças". Um terceiro é sua comparação com as manifestações das potências do bem. Sabedoras de sua presença excepcional na vida dos homens, elas avisam de suas intenções. Como disse o Anjo: "Não temas, Zacarias".

O combate espiritual começa, portanto, com o exame da natureza das aparições, de acordo com esses critérios, e é consumado pela lição de Jesus Cristo: as aparições das potências infernais não receberam o poder de fazer o mal. Só ganham força se nos dominam pelo medo.

Santo Antônio recomenda sempre a paz da alma diante das alucinações. Não acreditem nelas, diz o homem santo, não receberam poder de fazer o mal sem nosso assentimento, indaguem de suas intenções, invoquem a proteção do Senhor. Tudo se desvancerá.

Não há no texto composto por Atanásio nenhuma mandinga, nenhuma superstição, nenhuma fórmula mágica, nenhum preparado ou poção para combater os demônios. Apenas observações práticas sobre os tipos de ilusão que podem afetar nossa mente, uma lição extraída da Escritura, baseada na Ordem criada por Deus, e a recomendação de inquirir os seres e entidades manifestos.

Vida de Santo Antônio, parágrafos 41 e 43:

41. ‘E posto que me mostrei tolo ao detalhar essas coisas, recebam esta ainda como ajuda para sua segurança e destemor; e acreditem-me, pois não minto. Uma vez alguém bateu à porta de minha cela e saindo vi um que parecia de grande tamanho e altura. Então, o inquiri: ‘quem sois?’; ele retrucou: ‘sou Satã’. Disse: ‘porque estais aqui?’; ele respondeu: ‘por que os monges e outros cristãos de mim tanto reclamam sem que o mereça? Por que me amaldiçoam a cada hora?’. Respondi: ‘por que os atormenta?’; ele disse: ‘não sou aquele que os atormenta, eles atormentam a eles mesmos pois me tornei fraco. Não leste (Salmo ix.6) ‘As espadas do inimigo chegaram ao fim e tu hás destruído as cidades?” Não tenho mais um lugar, uma arma, uma cidade. Os Cristãos estão em toda a parte e mesmo o deserto está cheio de monges. Deixa que cuidem deles mesmos e não me amaldiçoem’. Então me maravilhei com a graça do Senhor e disse a ele: ‘Fostes sempre um mentiroso e jamais dizeis a verdade até aqui, pois mesmo contra vossa vontade, dissestes a verdade. Pois a vinda do Cristo a vós fez fraco, ele vos derrubou ao chão e retirou vossas vestes’. Ouvindo, porém, o nome do Salvador e não sendo capaz de suportar o queimar por ele provocado, desvaneceu no ar’.

43. E para seu destemor contra eles guardem este signo certo – sempre que houver uma aparição, não se prostem com medo, mas o que quer que seja primeiro perguntem: ‘quem sois’? De onde vindes? Se for uma visão dos santos, eles dirão e seu medo se mudará em alegria. Mas se a visão vem do Diabo, logo se torna fraca ao ver o firme propósito de sua mente. Pois meramente perguntar ‘quem sois?’ e ‘de onde vindes?’ é prova de frieza. Assim perguntando, o filho de Nun aprendeu quem era seu auxiliador; nem escapou o inimigo da inquirição de Daniel.

non sui assaz lassa cativa?

O primeiro Congresso Internacional de Audição de Vozes está marcado para a cidade de Maastricht, no dias 17 e 18 de setembro de 2009. O trabalho de advocacy em favor da comunidade, informa o site (http://www.intervoiceonline.org/), começou há vinte anos, em 1987, com a fundação, na Holanda, da primeira associação de Audição de Vozes, um grupo de auto ajuda. Essa experiência hoje influencia as pessoas que vivem essa realidade, suas famílias e os pesquisadores da área.

O site informa que 'nos último cem anos' o tratamento baseado no conceito aceito da doença não ajudou suas vítimas a viver em paz uma existência funcional. As investigações recentes mostram que as vozes expressam emoções em conflito, como resultado de traumas. As experiências psicóticas estão relacionadas pelas experiências de vida de quem ouve vozes. Essa constatação experimental tem ajudado a muitas pessoas afetadas em seu esforço de auto recuperação. O programa do Congresso, contudo, não é radicalmente médico ou secular: haverá palestras sobre o uso espiritualista de espíritos curadores, sobre xamanismo, sobre "espiritualidade, trauma, psicose" e sobre Emanuel Swedenborg.

A falta de interesse em uma compreensão religiosa do fenômeno não agrega maior peso aos argumentos científicos, nem diminui os paradoxos associados a percepções não controladas pela mente ou não assimiláveis ao curso habitual da experiência sensorial.

A explicação bioquímica pode ser eficaz em revelar a causa fisiológica da audição de vozes, mas dificilmente daria conta da específica diversidade das vozes ouvidas e do seu conteúdo. Por que "este" delírio e não qualquer "outro"? O problema de ouvir vozes é tanto ouvi-las, como ouvir o que dizem. Uma explicação que invertesse a relação de causalidade seria perfeitamente plausível: a necessidade de produzir uma mensagem levaria a um desequilíbrio químico e, por esse meio, à audição de vozes.

A explicação psicológica também apenas desloca o problema causal usando a expressão "trauma". Por que alguns traumas levam a ouvir vozes e outros não? Há uma relação fixa e substantiva entre um trauma e a mensagem das vozes? Por que algumas pessoas sofrem traumas diante de situações vividas normalmente por outras? Na verdade, não se trata de uma explicação, mas uma descrição.

Na prática, qualquer explicação ou terapia terá de se basear em uma postura que pode ser chamada de objetividade estrita: a experiência é definida por um ponto de vista abstrato, suprapessoal, que distingue arbitrariamente os fatos reais dos irreais com base em critérios pragmáticos e de consistência interna. Qualquer evento mental que não cumpra os requisitos impostos por estes critérios, é uma aberração química do cérebro e não quer dizer coisa alguma, senão em sentido derivado. Ou seja, é sintoma. Deve ser quimicamente suprimido.

Nesse ponto, basta inserir um simples consideração para que os paradoxos retornem sob outra forma: a decisão de ingerir um medicamento seria, em tese, pessoal. Quem toma o remédio, toma uma decisão sobre a natureza do evento mental que o afeta. O fato de um terceiro ser capaz de tomar essa decisão por outra pessoa em nada muda o caráter do problema gnosiológico. Acreditar em um remédio é acreditar em uma doença.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Beatus vir, qui suffert tentationem

Considera qual'è la cagione per cui permette il Signore, che il Demonio si sciolga contro di te, che ti vengano trabalhos, que te venham tribulações, que é para provar se tu o ama. É tempo de estar em prova, aceita o desafio do Senhor, como Santo Antonio Abbate. Se combatia no passado para obter uma coroa de louros, de pinho, quanto melhor não será lutar para obter a coroa da glória, immarcescibilem coronam gloriae. Crês em um Príncipe que te promete um pálio e não crês na promessa de Deus? A coroa que não se pode ver? Quanto à la sua sofferenza, tanta sarà parimente la tua corona ch'è la cagione, per la quale anche non dicesi che il Signore promisit illam, mas ripromisit, porque não é um regalo; é uma recompensa.

(gennaio xvii, Tiago 1, 12)

l'autra es cors e volontatz

A administração da própria vontade não é coisa trivial. O desassossego humano é fato concreto e cotidiano. A paz da alma é algo buscado com prioridade. A consultoria de saúde IMS Health, em seu relatório de 2008 sobre a venda de medicamentos nos Estados Unidos trouxe o dado decisivo: mesmo perdendo a margem sobre os medicamentos controladores de colesterol, os antidepressivos são, desde o início da década, os remédios mais vendidos em valor. Em 2003, a vendas de antidepressivos passavam de 207 milhões de dólares; em 2007, elas chegaram a 232.7 milhões. Sozinhos, representam mais de 6% do gasto com remédios nos Estados Unidos. Os controladores de colesterol vêm em segundo lugar, com quase 221 milhões, mas o terceiro lugar na lista também é sugestivo: codeína e combinados totalizam vendas de 186,1 milhões de dólares. Boa parte desses analgésicos certamente são usados para obter a chamada paz da alma.

As instruções oferecidas pelo site de aconselhamento médico PDR Health sobre a prescrição do principal antidepressivo, o Prozac, pareceria familiar para qualquer especialista do século XVII no estudo da Melancolia:

"Prozac é prescrito para o tratamento da depressão - isto é, uma contínua depressão que interfere com o funcionamento diário. Os sintomas de depressão maior incluem mudanças de apetite, hábitos de sono, coordenação mente-espírito, diminuição do desejo sexual, fadiga, sentimentos de culpa ou depreciação, dificuldades de concentração, pensamento lento e pensamentos suicidas. Prozac também é prescrito para tratar o transtorno obsessivo-compulsivo. Uma obsessão é um pensamento que não se vai; uma compulsão é uma ação repetida para reduzir a ansiedade. A droga também é usada no tratamento da bulimia e outras desordens da alimentação, inclusive obesidade.

Além disso, Prozac é usado no tratamento da síndrome do pânico, inclusive pânico associado com agorafobia e seus sintomas (taquicardia, dores no peito, suor, tremor, dificuldades de respiração). No caso de crianças e adolescentes, Prozac é usado no tratamento de depressão e do transtorno obsessivo compulsivo. Sob o nome de Sarafem, é usado também no tratamento da TPM, nos casos do mudança severa de humor, como ansiedade, depressão, irritabilidade ou raiva persistente e tensão".

Depois de guardar alguns instantes de respeito à notável qualidade literária da descrição médica, que parece extraída da pena de Robert Burton, pode-se meditar no paradoxo de uma sociedade livre e democrática, liberal em seus costumes, secular e tecnológica, rica e variada, onde o problema da paz da alma individual assume, por motivos reais ou imaginários, tal dimensão financeira e científica. É evidente que está no interesse das indústrias farmacêuticas ampliar a dimensão da depressão humana; é evidente que o indivíduo precisará de grande inteireza moral para não busca no medicamento o alívio para o menor dissabor, a mais pálida contrariedade. Não é surpresa, portanto, que o consumo recreativo do Prozac seja uma realidade. Traços do medicamento podem ser encontrados na água dos lençóis freáticos da Inglaterra, levados pelo sistema de esgotos.

Rir do ridículo da humanidade é uma antiga profissão filosófica, mas não chega a ser o melhor fecho para o comentário desses fatos. Talvez seja mais interessante considerar os homens dispostos a enfrentar a melancolia e conquistar a paz da alma sem a ajuda de medicamentos ou de seu equivalente pré-moderno - a magia. Em 1580, o frei Juan de Bonilla escreveu um notável tratado cujo título vai abaixo:




Bonilla recomenda uma delicada ascese da vontade:

quinta-feira, 11 de junho de 2009

et hoc scientes tempus

Considera, che il vero segno a conoscere se il Segnor viene amato con fedeltà, é conformar-se ao seu Santo querer Divino. Fácil quando ele nos concede saúde, glória, consolações espirituais; mais amargo quando é preciso sofrer a enfermidade, a desolação. Em qualquer caso, cabe cumprir a vontade de Deus [Sabedoria 3, 9: Os que põem sua confiança nele compreenderão a verdade, e os que são fiéis habitarão com ele no amor: porque seus eleitos são dignos de favor e misericórdia]. Chama Paolo o cumprimento dessa Vontade o Quietamento, da parte inferior e da parte superior da Vontade. Em muitos a vontade se aquieta mais rápido. mas não o intelecto; porque lhes parece muito estranho que Deus os trate daquela maneira, nem conseguem crer que aquilo é o melhor que pode lhes acontecer. Gottes Zeit ist die allerbeste Zeit, diz a cantata. Enquanto quiseres tirar de ti a vontade do Senhor, ou da que te governa em seu lugar, não acabarás de estar quieto; então te aquietarás quando o Senhor, ou a vontade que em seu lugar te governa, tiri a sè la tua, e però dagli una volta una totale disposizione di te. Aquiesce, como Jó 22, 21: e tem paz, e assim te sobrevirá o bem.

(gennaio, xvi)

poissas lur dis tot en apert

A prédica religiosa sobre o exercício da vontade não é funcional em uma sociedade de consumo. A valência positiva incondicional da afírmação da vontade está na base da publicidade, da escolha vocacional, das decisões maritais, do consumo, etc. Ela é ubíqua a um ponto tal que uma manifestação contrária é sempre polêmica. Casamentos baseados em um cálculo prudencial são condenados; conformar-se com o destino é a bête noire de toda a literatura de auto ajuda. É fácil concluir que a intensa difusão de tais idéias e valores é a contrapartida precisa da observância estrita dos comandos opostos. A imensa maioria das pessoas precisa se conformar com seu destino; a imensa maioria dos relacionamentos duráveis entre humanos sustenta-se em alguma forma de negação dos caprichos pessoais.

A razão é evidente e trivial: o livre exercício da vontade produz exatamente o resultado previsto pelo verso do Eclesiástico: você se torna a alegria de seus inimigos. De seus concorrentes sociais, para usar o linguajar contemporâneo. A realidade prática da vida da maioria das pessoas é aquela descrita por Paolo: o freio do cavalo, a disciplina, o treinamento.

Uma ironia nunca vem sozinha, nem a melhor é a que se percebe primeiro. A realidade dificultosa de indivíduos cotidianamente ensinados a resistir às pressões da mídia e das mitologias sociais, endossadas da boca para fora, é superada pela aparência singular do tratamento social dos que sucubem - os dos que acreditaram nos valores sociais dominantes.

Compradores anônimos, endividados anônimos, pródigos anônimos, viciados de todos os tipos, problemas que são para parentes, amigos e redes sociais, precisam ser submetidos a ritualizados tratamentos de controle da vontade. Sem qualquer apelo a um comando religioso superior - a um conselho oferecido por Deus - precisam realizar uma complexa operação intelectual para se curar. Se é que se curam.



(Imagem: Marcus Curtius lança-se ao abismo. Leonaert Bramer, 1657)

terça-feira, 9 de junho de 2009

et facta est tranquilitas

"Considera chi i nimici tuoi che sono i Demonij, di nessuna cosa mais gozam que quando te vêem comprazer facilmente à alma tua, isto é, à tua vontade. Sabem que é cavalo sboccato, que pouco a pouco te levará ao precipício. É preciso, pois, conformar a vontade às coisas lícitas. [Se satisfizeres a cobiça de tua alma, ela fará de ti a alegria de teus inimigos]. É preciso aniquilar a vontade, jejum, disciplina, contemplação. Qual è qual tempo in cui un Cavallo, massimamente vizioso, non habbia bisogno di morso? Paolo segue no exemplo do cavalo para demonstrar a certeza do progresso. Muito tempo solto, será difícil guiá-lo, conduzi-lo. Acostumado ao freio, não dá mais trabalho. Così proverai tu con la volontà."

(gennaio xv, Eclesiástico 18, 31)

segunda-feira, 8 de junho de 2009

aquel avangelis dures

A idéia religiosa de um conjunto finito de ações intrínsecamente maléficas, definidas de modo comportamental, distintas dos mandamentos divinos, merece toda a atenção por seu aspecto numérico, mas seu fascínio também pode ser derivado de uma tradução ao domínio secular. Todos sabemos que limitar a análise moral dos padrões de comportamento ao plano legal é quase inocência. O Direito é aquilo que a sociedade decide ser o Direito, escreveu Kelsen, não havendo razões para duvidar. De outro lado, o imperativo categórico e o princípio da utilidade são instrumentos poderosos demais para captar as sutilezas do exercício dos pecados cristãos. Em que ponto a gula é condenável? Gula é uma realidade humana diversificada demais para ter um julgamento ético definitivo pela utilidade ou pela norma universal.

Nenhum deles capta o sentido último da gula em sua persuasão íntima. Em que ponto a emulação se transforma em inveja? Resumiria aqui os paradoxos dos conceitos vagos: em que momento uma mera obsessão sensorial se transforma em uma transgressão, intimamente reconhecida como tal? Talvez seja uma pergunta sem resposta, mas é certo que existe a percepção subjetiva desse limite.

A experiência contemporânea reconhece essa fronteira do abominável, mesmo quando ela não é regulada pela legislação positiva. Em vários sentidos práticos, os pecados existem: ações que repugnam mesmo a uma consciência secular. A Inveja, por exemplo, não é objeto de legislação penal; afeta apenas ao seu portador; mas é inegável a repulsa social ao invejoso e, muito mais importante, a radical recusa a auto identificar-se como invejoso.

Um livro recente do jesuíta Giovanni Cucci, Il Fascino del Male, traz uma sugestão interessante: o conteúdo de todos os pecados mortais, em suas versões canônicas ou modernizadas, é uma forma de obsessão, de teimosia, de incapacidade de olhar para além de seu próprio horizonte. Essa teimosia é a mesma de Satã, que se recusou a adorar o Homem.

domingo, 7 de junho de 2009

mas .ii.jorn mi semblaran .vii.

Deus descansou ao sétimo dia; há sete braços no candelabro. Noé levou sete animais puros para sua Arca. A tradição judaica fala em sete câmaras da Geena e nos sete firmamentos. O Testamento de Rubem fala em sete espíritos do engano; Horácio (Epístolas 1.1.33-40) tem uma lista de sete vícios. Um cenobita do quarto século imaginou oito maus espíritos. Quem coleta essas informações, Solomon Schimmel (The Seven Deadly Sins, 1997, uma data que termina em sete por mero acaso), não se preocupa muito com o número ou com a identidade das listas de pecados ou de virtudes. Seja qual for a razão para um número preciso nas modalidades do Mal, porém, ela não pode ser trivial.

Notar a simetria com o Universo ou com os comandos de Deus é apenas repor o problema. Por que a escolha desse número em particular, o sete? O maior primo antes de dez, o primeiro número depois do número perfeito. Insondável porque foi criado o Mundo em sete dias e tanto assim será porque há sete pecados capitais.

Sete talvez seja uma maneira elegante de dizer que são muitos e variados, mas não inumeráveis, imprecisos, indistintos. Sete não é pouco, não é simétrico, e muitas são as faces do Mal.

O Vaticano, portanto, fez bem em esclarecer, em março de 2008, que não estava editando nenhuma lista de novos pecados ou ampliando o número canônico para incorporar pecados capitais como, por exemplo, jogar esgoto em um rio. A modernidade bem sabe que a desmoralização dos pecados está em seu número infinito.

O fato realmente relevante, pois, é a decisão de rejeitar a indistinção, de insistir em um mapa com pontos precisos, com itinerários de um mal a outro. Tranquilizar-se com a idéia de que o inimigo é finito, que é viável uma estratégia, que não seremos assediados por males desconhecidos, por tentações novas e imprevistas.





(Imagem: Bosch. Sete Pecados Capitais. 1495).

de qua septem daemonia exierant

Considera che non dice che chi sta, qui stat, vegga di non cadere, mas chi si crede di stare. Qui se existomat stare: perchè chi v'è, che verità stia de modo, che non vacilli? Ninguém pode estar seguro, Paolo recorda de Lúcifer, de Sansão, do rei David, sempre vulneráveis ao mal, à tentação. Os novos e os velhos na fé devem estar sempre em tremor; os penitentes porque caíram, os inocentes para que não caiam, por isso diz o apóstolo em I Coríntios 10. [é o verso 12 Aquele pois que cuida estar em pé, olhe que não caia]. Oito são as coisas que levam à queda, quatro intrínsecas, as outras extrínsecas. Intrínsecas, diz Paolo, são: i, a vista curta; ii, a fraqueza; iii, o peso de si mesmo; iv, a presunção de não cair. As outras são: i, a lubrificação da estrada, que faz cair; ii, a variedade de obstáculos e redes, como as que pegam os pássaros; iii, os muitos que hão a convencer do mal; iv, os pesos que se põem nos ombros, como as cargas sobre os jumentos. Sempre será possível superar? Não. Por isso, não te desvies e pede a ajuda Divina. Senza'ambedue queste cose, tu non puoi dare la via del Signore, ne pure un passo, che non sia di rischio gravissimo.

(gennaio xiv)

quinta-feira, 4 de junho de 2009

mas suffri s'o non sai per que

É comum a afirmação de que "a ingratidão é o maior defeito". Relações familiares, por exemplo, nunca escapam dos dilemas da interação estratégica e a expressão "chantagem emocional" deve sempre ser levada a sério. Matando tempo em salas de aeroporto, na saída de escolas e em outros hiatos semelhantes, refleti que a expressão é justa e com razões derivadas da teoria dos jogos.

O problema da cooperação não é apenas o da sua emergência, mas sua sustentação continuada, por várias rodadas do mesmo jogo. O reforço psicológico (um aspecto contextual de aprendizado fundamental para a compreensão realista dos jogos em ambientes sociais, como reconhece Shubik) para o "tit" que se segue ao "tat" pode ser descrito, sem nenhum favor, como gratidão. Pode bem se descrita igualmente como um efeito residual de trocas (monetárias, emocionais, sexuais, etc) continuadas e bem sucedidas. A gratidão reduz, a longo prazo, o custo inicial da cooperação, pela difusão evolucionária da percepção de que o gesto de boa vontade terá uma resposta positiva.

Como escreveu Paolo, Jesus fez três gestos gratuitos à espera da cooperação. A ingratidão do cristão gera um típico efeito do dilema do prisioneiro: Deus perde uma alma, a alma perde o Paraíso.



(imagem: payoffs do dilema do prisioneiro, 2005)

et exi de homine

Considera, quanto la legge nuova sia più stimable, che non era la legge vecchia. Quem transgredia a lei antiga, deveria ser lapidado, incenerito, impiccato. Mais ainda deveria ser quem transgride a nova e Paolo indaga, che t'impone tuo Confessore? Quem peca na nova lei, peca contra o filho de Deus, ainda que peque por ímpeto, por surrezione. Por três capítulos somos obrigados ao filho de Deus: porque encarnou, porque morreu e porque enviou o Espírito Santo. O mais grave, portanto, é a Ingratidão, che aggrava tanto la colpa di un Cristiano.

(gennaio xiii, Hebreus 10, 20).

quarta-feira, 3 de junho de 2009

del ric tesaur qu'Amor l'ensenna


Nada é mais repugnante a nosso racionalismo moderno do que a idéia cristã de um combate com os sentidos. A realidade sensível, desde os escritos de Galileu, propõe, no máximo, enigmas. Podemos atacar um problema, mas não questionamos o neutro conteúdo emocional das coisas desse mundo. O tanto que é possível saber sobre a literatura contemporânea sobre auto ajuda confirma a idéia de que bastaria a evidência e o convencimento para encontrar a paz espiritual e mesmo a felicidade. A experiência com a cura de viciados em jogo, álcool, drogas, fumo, remédios mostra quão frágil é tal suposição.

Os séculos passados eram menos otimistas com respeito à natureza humana. O professor Pierre Hadot imprimiu, como título de seu livro sobre o Imperador Marcus Aurelius, a expressão familiar: a cidadela interior. O estoicismo e várias outras filosofias reconheciam a dimensão de combate espiritual, implícita em uma vida feliz e virtuosa, e a metáfora compreendia as disciplinas do soldado, a obediência, o treinamento, o medo da derrota e o sentimento da vitória. Nos dias que vão é necessário apenas conscientizar-se. É uma notável crença nos poderes da razão.

A condenação de Paolo aos que seguem dominados por uma Mulher, pelo dinheiro, pela fama nada tem de carola quando posta em sua linha genealógica original - o sentimento grego da vida como ágon, como luta.

Notaria apenas uma sensível diferença militar. As Meditações foram escritas à sombra de um combate de morte com os bárbaros, uma guerra defensiva que se tornou ofensiva pela selvageria dos oponentes. O estóico romano, imperador ou escravo, pensa em termos defensivos, na fortaleza inexpugnável da própria alma. A expressão usada por Jesus, segundo Lucas, talvez denote o homem no campo de batalha, que busca o conflito com as coisas desse mundo. A defesa nos faz invencíveis; o ataque nos concede a vitória, escreveu o filósofo.


(Miguel acorrenta Satã. William Blake).

terça-feira, 2 de junho de 2009

Contendite intrare per angustam portam

Considera, che l'entrare in Paradiso non è si facile, come se l'inganano alcuni. Ci vuol forza, ci vuol fatica. Diz o Cristo: contendite. E qual é esse conflito, que se há de sustentar? É aquele entre os sentidos e o Espírito. E quando não entram no Céu? Porque se encontram sempre dando vitória aos sentidos e na hora da morte, querendo dar vitória ao Espírito, renunciando ao amor daquela Mulher, daquele dinheiro, daquela reputação, se encontram enervados de forças e moralmente nada podem fazer. Não basta vencer vez ou outra, ma a rimaner vittorioso.

(gennaio xii, Lucas 13, 24)

segunda-feira, 1 de junho de 2009

lai en la tor on si jasia


O tropos comparando Lázaro e o homem rico mereceu um dos mais belos corais de J.S. Bach, na cantata sobre a guerra entre o arcanjo Miguel e Satã. Não avançaria, contudo, muito além da parábola cristã sobre a dialética da exaltação e da humilhação, exposta por Jesus, implícita no Velho Testamento, dos Céus como espelho invertido das potências da Terra. Essa mera inversão de papéis entre o Céu e a Terra, sugestiva de um sistema de pontuações teologicamente infantil, não revela toda a leitura de Paolo. Seu segredo está nas últimas linhas, ainda uma vez bem parecidas a um paradoxo zen.


O problema da salvação não está em um sistema linear e explícito de pontuações, que punisse os Reis e os Poderes que estão com o Inferno e mandasse os pobres para o Paraíso. Tal equação seria simples demais. O problema é a incerteza sobre o gesto que realmente importa, por mais mínimo que seja, por mais obscuro que seja. Uma palavra generosa, dita sem muito pensar, pode ser esse gesto; a esmola dada em um momento de felicidade; um pequeno trabalho: tudo isso pode contar para Deus. Ninguém pode saber, por definição; suspeita-se.


As Potências da Terra são ridículas porque parecem mandar muito, mas não produzem, por si mesmas, nada de relevante aos olhos de Deus. Ademais, são perfeitamente substituíveis. Encerrado o funeral de Estado, restam apenas artigos de enciclopédia, fotos e folhas amareladas. Nada mais ridículo, por sinal, do que ex-Potências em vida. As monarquias tinham essa sabedoria: deixava-se o cargo com a Morte. Ex-monarcas são presas fáceis de conspirações de governantes, figuras quase cômicas.


O conteúdo real da história de Lázaro e o homem rico pode ser todo outro, não tão simplório com quer sugerir o coral. Lázaro pode ter sido bem mais que apenas mais um pobre.

(imagem: Alegoria da Morte do Príncipe D. José. 1790. Biblioteca Nacional de Portugal)

Fuit in diebus Herodis, regis Iudaea

Considera quanto vani sono tanti huomini, i quali si afaticano tanto per aquistare tutte l'altre doti, fuori che quella ch'importa. Quantas escolas se têm de música, de canto, de cavalaria, e onde todos vão? Quantos vão a uma que ensina o amor de Deus? Considera que quem é privado daquela sabedoria Divina, che in nihilum computabitur, para que se inteire da moeda que corre no Céu. (porque qualquer homem, mesmo perfeito, entre os homens, não será nada, se lhe falta a Sabedoria que vem de vós, Sabedoria, 9,6, trecho citado). Se estima o valor de um Alexandre, a elegância de um César, a eloquência de Cícero, a astúcia política de um Tibério? in nihilum computabitur. Um mendigo como Lázaro, idiota, lúrido, lércio, cheio de chagas mal cheirosas é mais estimado que todos os grandes homens juntos. Crês nessa verdade? Por que não a pões em prática. Uma pequena palha que recolhes da terra por amor de Deus, uma escudela que laves, um strapazzo que toleres, um ato conquanto mínimo que fazes por mortificação, por humildade, por obediência, por caridade, te rende mais estimável, no Céu, que se fosses um Platão.

(gennaio xi)