quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Vigilate omni tempore

Considera, che il Signore vuole con queste parole darti ad intendere, che l'opera della tua eterna salute non ha da dipendere nè della tutta da te, nè da lui. Há que fazer a tua parte, há que pedir e recomendar-te a Deus. E não basta começar, é preciso continuar. Alguns crêem que basta orar e pedir no tempo da tentação; não é assim. Não vês como procedem os cães fiéis? Assistem à sua grei mesmo quando estão distantes os lobos, distantes os ladrões. Dessa forma colherás os frutos no dia do Juízo, quando os justos estarão firmes, com o testemunho da boa consciência. E há que suplicar ao Senhor sempre: Schivar nell'ultimo dì la sorte cattiva, incontrar na buona.

(febbrajo xxv, Lucas 21.36, Vigilate omni tempore)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Car cils douzours tan dousa es

Os problemas da menção a São Matias Apóstolo não se limitam ao procedimento de sua escolha ou aos materiais biográicos extramente limitados, mesmo para uma figura do primeiro século. A literatura patrística registra, sem qualquer ambiguidade, um evangelho (apócrifo) de Matias, originário do Alexandria e com data atribuída aos anos 100-150 CE. Especialistas acreditam mesmo ter encontrado um papiro com o seu texto.

Oficialmente, nada restou do texto, mencionado por Orígenes, Eusébio, São Ambrósio, São Jerônimo e o Venerável Beda. Há referências oficias em uma lista de decretos do Papa Gelásio do século VI e uma relação bizantina de textos canônicos do século VII, o Catálogo dos Sessenta Livros Canônicos. O Evangelho de Matias, de sabor claramente gnóstico, pode ser, na verdade, o mesmo texto das Tradições de Matias, que também merece referências específicas na literatura patrística.


Essa é melhor fonte na internet: http://www.earlychristianwritings.com/traditionsmatthias.html





Imagem: Zacharias Dolendo [Leiden, 1561 - Leiden, c. 1604]

En segre cort et en servir

Não é rara a menção aos que, estando elevados diante do Senhor, ainda assim caíram. Orígenes foi citado duas vezes desde a primeira página do Maná; a idolatria de Salomão surge agora, ao lado do fariseu Saulo, caído de tão alto. A menção a Judas, derrubado da posição de apóstolo é ainda mais chocante, induzida pelo santo do dia, São Matias Apóstolo.

Talvez sem querer, chama-se atenção para um dos episódios mais interessantes do Evangelho: a substituição de Judas, demandada por Pedro logo após a ascensão de Jesus. Trata-se do primeiro assunto decidido pela comunhão dos crentes, de acordo com a narrativa em Atos (1, 15-26).

Para começar, houve dois candidatos: José, chamado Barsabás, o Justo, e Matias. Pedro invoca a participação do Senhor, mas a mensagem não é direta:

"E lançando-lhes sortes, caiu a sorte (kleros) sobre Matias. E por voto comum foi contado com os onze apóstolos" (Atos 1, 26)

A expressão voto comum existe apenas em português. Em grego, houve um sorteio. Na verdade, lembram os comentadores que kleros, quer dizer, tecnicamente, dados.


In eos quidam qui ceciderunt severitatem

Considera la Bontà, e la Severità del Signore. Uma severidade nunca é maior que sua bondade, pois jamais pune conforme a culpa. A consideração da bondade e da severidade é a escada para fugir do Inimigo. Quando ele tenta a desconfiança, pensa em quão bondoso é; quando ele tenta a soberba, pensa em quão terrível é. Esteja firme nesse escada e considera quantos dela caíram, mesmo de sublimes alturas. Judas, que caiu do apostolado, Saulo, Salomão, Orígenes e tantos que estavam no Senhor. Não caem tantos ao primeiro pecado? Considera na bondade a ti destinada, favorecido por Deus com ajudas eficazes, especiais, superabundantes. Considera a ruína que te espera se o Senhor te subtrai tal benignidade. Però, c'hai da fare, se non che sempre raccomandarti ardentemente al Signore, come chi sta tra la speranza, e 'l timore, e sempre ricordati, ch'egli è benigno, ma ancora ch'egli è severo?

(febbrajo xxiv, Romanos 11, 22, Vide bonitatem)

domingo, 27 de dezembro de 2009

Mais lai on tota li gens vai

A comparação do combate do Cristão com as lutas olímpicas é contemporânea da evangelização paulina. O texto clássico está em I Coríntios 9, 24-27. O Apóstolo afirma que corre e combate; corre, contudo, em direção à certa salvação, luta contra seu corpo. Segneri está certo em separar muito claramente os dois tipos de agon.

Nos dias que vão, a metáfora está reduzida a uma mera expressão confessional: um atleta que também é cristão. A descrição da organização norte-americana é quase brutal:

Athletes In Christ is a non-profit 501c (3) corporation dedicated to seeking the kingdom first and providing quality content about professional and amateur athletes who are willing to stand-up and make an eternal difference. We are a Christ-centered Bible believing organization designed to share the gospel of Jesus Christ through the vehicle of sports.

http://www.athletesinchrist.org/aboutaic.htm.


sábado, 26 de dezembro de 2009

ubi erat Ioannes baptizans primun

Considera ciò, che da te ricerca il Signore per coronarti, ch'è che combatti contro tuoi scorreti appetiti. Este é o combate que lhe dará a santidade e não orações, revelações e todas as devoções exteriores. Tais são apenas meios ou fruto da santidade. É preciso combater legitimamente, em verdade. Não largar nunca da lança. O Senhor não pede que triunfes, mas que combatas, continuamente, sem dar trégua ao inimigo. As batalhas espirituais são diferentes das batalhas materiais. Nestas, tu te cansas com a luta; naquelas, tu ficas mais forte quando combates. Três são as tuas armas: a desconfiança de ti mesmo, para que nunca dês o combate por cumprido; a confiança em Deus, ele só pode te dar a vitória; e a oração, o meio para pedir a ajuda de Deus. Nei giuocchi Olimpici, chi metteva il premio a i Lottatori, non dava ancora le forze. Sedeva a Giudice della Lotta bensì, ma non si moveva a socorrere, a sostenere, ò a levare alcuno di terra. Stava qual semplice spettatore ozioso. Iddio non così. Ti promete la gloria e ti dá la grazia; ma vuol que tu glie la chiegga continuamente.

(febbrajo xxiii, 2. ad Timóteo 2, 5, Qui certat in agone)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

apenre pos, non sui tan veillz

Nada mais natural do que uma conexão entre condenação da fama mundana conduzida por Segneri e o culto contemporâneo da celebridade. Sua análise é tão serena e precisa que aplica-se com facilidade ao noticiário do dia, desdobrando-se de forma criativa na indagação do que seria a fama de cada um perante o Senhor. Ele - que tudo sabe - não precisaria dos caminhos incertos do rumor para formar seu julgamento sobre cada um. No entanto, a figura retórica mantém sua força.

Se existe uma lição, contudo, que sempre sobrevive ao teste da realidade é aquela registrando as virtudes públicas decorrentes de vícios privados. Em vários aspectos, o que pode parecer aberrante do ponto de vista individual - a avareza, a genialidade, o gosto pela fofoca, etc - pode produzir vantagens sociais substantativas - o investimento, o desenvolvimento tecnológico, a imprensa. Não é diferente com a busca da fama terrena e vejo com fascinação o exame do tema pelo Tyler Cowen.

Em Qual o Preço da Fama? Cowen chega a dezenas de conclusões fabulosas, do plano moral à filosofia política, que não podem ser resumidas em uma nota breve. Quase todas, por sinal, decorrentes dos mesmos mecanismos descritos por Segneri. Ele sugere, por exemplo, que a busca da fama tem um impacto financeiro negativo sobre as celebridades, que, na média, extraem rendimentos decrescentes de seu investimento em se tornar e manter famoso. Não nos iludamos com meia dúzia de bilionários famosos, a realidade das profissões que dependem da fama é cruel. De outro lado, na média, os fãs normais extraem sentido e satisfação existencial com muito menos investimento pessoal na indústria da fama. A escala social que torna viável a cultura pop é sustentada, na verdade, sobre dois tipos de vítima: o aficcionado obsessivo e o famoso fracassado. Cowen não tem dúvida de que boa parte da economia americana está relacionada à indústria da "fama", mas concordaria com as advertências de Segneri sobre o danos morais pessoais da mesma.

Cowen atinge alturas filosóficas quando analisa o impacto da fama moderna sobre a política e sobre o poder. O Estado Moderno é muito mais poderoso do que qualquer versão similar do passado e os riscos associados à liderança política são, portanto, muito maiores. Os holocaustos modernos comprovam o poder da seriedade e do messianismo. As eleições, contudo, terminam forçando o político moderno a se tornar uma celebridade e, com isso, ele vai perdendo algo de sua seriedade. Ao depender da fama, vai se tornando mais ridículo. Há 30 anos, um chefe de Estado com uniforme militar causava alguma impressão; hoje é visto como um personagem de opereta. Segneri, no fundo, tem toda a razão.


Videte et cavete ab omni avaritia

Considera, dove al fin si riduce tutto quel bene, che può venirti dalla lode degli huomini. Possono dirti beato, ma non già farti. Beatum dicunt. És, na verdade, como estás diante da face do Senhor. Como vais perdido por conta das loas à vaidade! Quem te louva, não faz bem a ti e mal gravíssimo te faz. Roubam o conhecimento real de ti mesmo, fazem crer naquilo que não és. Cobrem os teus defeitos, dão desculpas, dizem que é virtude o que é vício. E tu tanto amas o que dizem? Eles te tiram da melhor estrada que há - a Humildade. É a estrada que Cristo trilhou na Terra, que calcaram tantos santos, tantas almas caras a Deus. Depois que tanta estima fazes de ti mesmo, vem o desprezo ao próximo e a sobera. Ó que ruína indizível. Considera com que forte resolução deverás renunciar a qualquer loa que te possa vir dos homens. Não trabalhar para estimulá-las, não aceitá-las, não lhes dar albergue na mente, desprezá-las, desvia-te dos raciocínios que te provocam como de provocadores importunos e finalmente avvezzati a voler solo nelle tue cose l'approvazione da quel Signore, che non solo può dirti beato, ma ancor può farti.

(febbrajo xxii, Popule meus, qui te beatum dicunt, Isaías 3. 12)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

così restituito alla fortunata sua madre

O espetáculo de fé das Missões do padre Segneri não se limitava às missas e penitências. Havia um empenho direto na correção dos costumes, a começar das rixas e vinganças endêmicas no meio rural italiano. Identificado o ofendido pela morte de um parente e, portanto, responsável pelo reinício do ciclo de mortes, Segneri iniciava seu assédio que podia incluir, caso nenhum convencimento fizesse efeito, a própria flagelação, realizada em favor do renitente. Tão efetivo era o procedimento que as pessoas que buscavam preservar seu sentimento de vingança fugiam ou se escondiam, principalmente quando mulheres. Segneri buscava todos os envolvidos onde estivesse e promovia o seu teatro dramático do arrependimento.

Outro capítulo inevitável da reforma dos costumes era o combate ao jogo de cartas (cujo fornecimento no Antigo Regime era sujeito a um regime fiscal específico) e às canções profanas. Nos eventos das Missões era rotineiro pedir pelos baralhos e queimá-los na frente de todos. Não faltava sequer um elemento de incentivo: os baralhos eram trocadas por medalhas com a efígie do Papa. Quanto às canções profanas, Segneri e seus auxiliares buscavam apenas substituí-las, distribuindo hinários e poemas sacros.

Tal ofensiva cristã despertava, naturalmente, a reação das forças infernais, que promoviam todo tipo de acidente, aproveitando-se das multidões reunidas: quedas de pedras, de pontes, enchentes, barulhos eram os estratagemas do Inimigo para perturbar as Missões. As tragédias, contudo, eram sempre evitadas por fatos maravilhosos e há mesmo uma nota de rodapé assegurando que tais fatos foram testemunhados por um sacerdote. Talvez não se acreditasse mais apenas na força da palavra escrita. Como o caso do bebê de seis ou sete meses que caiu em uma torrente, depois que os remeiros desistiram de controlar o barco e buscaram a salvação nadando. Restituído à sua mãe, para festa universal.

Raguagglio, capítulos XXI a XXXI

sábado, 12 de dezembro de 2009

Sener, hom vos dis som voller

A inclusão do termo Deus em qualquer raciocínio leva aos paradoxos das infinitudes, que ainda hoje afligem tantas teorias físicas. Basta uma divisão por zero para arruinar toda um conjunto de equações; basta incluir a vontade de Deus em um argumento para tornar difícil uma conclusão moral. Deus, como lembra Segneri, é tão superior a nós em poder e em essência que sua posição de Juiz termina controversa. Condenar-nos seria prova do sumo jus, suma injúria - o exercício de um direito em excesso. Inocentar-nos, diante das culpas mais aberrantes, seria inviabilizar moralmente o mérito. O mistério do livre arbítrio, na verdade, nem se aplica nesse ponto; o problema é mais trivial: por que o infinito Deus haveria de julgar o pecador por comer um bolo a mais, por um adultério a mais?

Segneri fez aqui uma sugestão perigosa. Deus pode tudo, inclusive condenar o mais puro de nós e salvar o mais renitente pecador, diante de uma mínima penitência. Deus estaria interessado em nossos motivos e não em nossos atos. Nossa vida sexual não teria qualquer interesse moral para Deus a não ser por revelar nossos cálculos e nossas intenções, as mais íntimas. Ele estaria nos colocando, na verdade, diante do mesmo dilema que abateu Satanás: curve-se, mesmo diante do absurdo. Se, de fato, nos concedeu o livre arbítrio, Deus joga dados, ao contrário do que pensava um célebre cientista.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

quasi spiritualibus, sed quasi carnalibus

Considera maraviglia! Deus, Iddio, un Signori di tanta maestà, offeso, oltreggiato, da chi? da un'huomo, cioà, da un verme vilissiomo della terra, da un suo suddito, da un suo schiavo. E lhe dá, sem obrigação, por mero afeto, por mero amor: estímulo, tempo, ajuda. Quem poderia crer em tal coisa? Admirarias a bondade de Deus e deplorarias a retribuição bestial. Ah! se Deus punisse de imediato! Ah! se exigisse grandes sacrifícios para conceder o Paraíso! Vê como abusas da paciência divina. Sai che ella non è altro, che spazio di penitenza, locus poenitentiae. Tu la riconosci per tale? Compungiti, confonditi, umiliati, e guarda bene, perchè questo sarà it torto sommo, che farai a Dio, se abateris in superbiam.

(febbrajo xxi, Jó 24.23, Dedit ei Deus locum penitentiae...)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A la fe Deu! pauc sap de plag

A conexão entre a obra religiosa e filosófica de Hindmarsh e as sugestões de Segneri sobre a cidade de cada um é certamente arbitrária, mas, ainda assim, sugestiva. Toda configuração é uma escolha e o conceito topológico chave, nesses casos, é a mera compactividade. É possível construir uma espaço compacto entre Segneri e Hindmarsh? Ou, por outra, tomando como suposta a compactividade, qual a topologia a ser descrita?

Nunca estive convencido de que as visões acadêmicas sobre a disciplina filosófica encerram o debate sobre a topologia do espírito. A ciência popperiana pode se dar ao luxo de uma descrição mais precisa de seus limites; o que chamamos de filosofia vai além disso e poderá encobrir fenômenos - como rituais ou a formação de discípulos - antes desconsiderados. Ellenberger, por exemplo, notou há tempos que o traço distintivo da psicanálise não é sua teoria da mente humana, partilhada com várias outras abordagens, mas sua insistência no controle estrito de seus praticantes. Em uma corrente política, esse controle faz um sentido, mas em uma disciplina espiritual, suas implicações são outras.

Essa abordagem não é original. Benjamin extraiu lições importantes do estudo de autores marginais do barroco alemão e mesmo Voltaire chamou atenção para objetos não convencionais, como o fanatismo. A escolha de Segneri como centro de uma análise filosófica do domínio espiritual oferece perspectivas topologicamente novas sobre o passado e sobre o futuro das coisas que são escritas.