sábado, 20 de junho de 2009

d'onor, de pres ni de plazer

A condenação evangélica da riqueza não é sustentada, hoje, nem mesmo pela doutrina oficial da Igreja. Certamente dos pobres é o reino dos Céus, mas as palavras duras e ameaçadoras do Evangelho segundo Lucas são ouvidas apenas nos conventículos mais radicais da Teologia da Libertação. É notável a transformação teológica da riqueza pessoal em sinal de bendição divina e prêmio pelo exercício das virtudes da modéstia e da previdência. Esse fenômeno, porém, foi devidamente exposto em um livro célebre: não é necessário repetir seus argumentos, cabe registrar o fato. Nesse ponto, o Evangelho talvez não fosse mais completamente compreensível.

Em favor da condenação que há em Lucas, revivida por Paolo em termos igualmente ameaçadores, pode-se afirmar que, na Antiguidade, a riqueza pessoal tinha outras características. A sociedade era infinitamente mais pobre e o número de ricos igualmente menor. Os ricos geralmente conquistavam suas fortunas em direta conexão com o Estado: eram crias dos tiranos, beneficiados por transferência de impostos e, portanto, toda riqueza era injusta. Por fim, comparados aos ricos de hoje, os ricos do Evangelho eram infinitamente pobres. Sem finança desenvolvida, não há como acumular riqueza em grande escala. Ser rico, muito mais do que hoje, era exercer um estilo de vida: luxo ostentatório, comida, bebida, sexo, jóias, roupas. Os ricos de Roma ou da Palestina seriam hoje considerados arrivistas vulgares: um público ideal para o consumo de 'marcas sofisticadas' tão ao gosto das altas classes médias. Os ricos da Revolução Industrial até o presente, por sua vez, seriam os geradores de emprego e investimento da propaganda governamental. A condenação de seu status moral seria antiquada e contraproducente.

É surpreendente notar que mesmo essa visão secular e otimista é desgastada pelas realidades de uma economia capitalista, suas seguidas crises, sua contínua administração por autoridades políticas. Examinemos, ao acaso, um breve texto de John Maynard Keynes, no capítulo 24 de sua teoria geral do emprego, juros e moeda, onde apresenta várias notas conclusivas sobre a filosofia social sugerida por suas idéias econômicas. O último parágrafo da primeira seção traz considerações pertinentes a esse assunto:

“De minha parte, acredito que existe justificação social e psicológica para significantes desigualdades de renda e riqueza, mas não com as disparidades hoje existentes. Há valiosas atividades humanas que requerem o desejo de fazer dinheiro e o ambiente de apropriação privada para a sua fruição. Além disso, perigosas proclividades humanas podem ser canalizadas por relativamente inofensivos condutos pela existência de oportunidades de fazer dinheiro e fortuna, proclividades que, não satisfeitas desse modo, podem encontrar escape na crueldade, na imprudente busca do poder pessoal e de autoridade e outras formas de auto engrandecimento. É melhor que o homem tiranize sua conta no banco que seus concidadãos; e ainda que o primeiro seja denunciado como um caminho para o segundo, por vezes representa ao menos uma alternativa. Mas não é necessário para o estímulo dessas atividades e a satisfação dessas proclividades que o jogo seja conduzido com tal cacife. Valores menores em jogo serviriam ao mesmo propósito assim que os jogadores a eles se acostumassem. A tarefa de transformar a natureza humana não deve ser confundida com a tarefa de administrá-la. Ainda que na comunidade ideal os homens podem ser inspirados ou instruídos a não ter interesse no que está em jogo, seria decerto sábio e prudente permitir que o jogo seja jogado, sujeito a regras e limitações, enquanto o homem médio ou mesmo uma significante parte da comunidade é, de fato, fortemente adepta da paixão de fazer dinheiro”.

Escrito na década de 1930, o parágrafo apresenta o rico, o homem produzido pelo instinto de enriquecimento, como uma mera espécie economicamente útil, como as abelhas, os bois ou as cabras. O rico deve ser administrado, inclusive na dimensão de sua riqueza, se ela é conveniente ou não para a boa ordem social. Há poucos anos, o Estado russo, por exemplo, decidiu que vários de seus ricos cidadãos haviam extrapolado esses limites e os condenou à prisão. Keynes sugere que a possibilidade de ser rico é quase uma função social, um seguro contra certo tipo de personalidade, uma canal para tendências humanas infelizmente ainda persistentes.

Tais ricos não estariam mais, portanto, tão longe assim dos personagens folclóricos da Antiguidade: criaturas toleradas pelo Estado por razões pragmáticas e presos à mitologia do consumo, ao auto engrandecimento e a fantasias. Inúteis, no fundo, pois todos ficamos doentes, velhos e morremos. Ou padecemos do suplício, caso o Imperador Tibério assim o decida.

Por isso, sugere Paolo, é melhor nos acostumar à tribulação, pois que essa é nossa realidade. Os ricos apenas se iludem, por um tempo. Por isso disse Jesus, ai dos ricos!

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