quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Eu me opriiu pe valea bogata in morminte

A sofisticação psicológica das notas de Segneri só podem ser explicadas por sua longa e calculada observação do comportamento humano. A atitude de seu "peregrino", sempre andando na beira do abismo, mesmo quando conhece a dimensão do abismo, por muitas décadas foi compreendida em termos morais ou atribuída a forças ocultas. Apenas recentemente seu caráter obsessivo recebeu uma descrição científica sob o conceito de comportamento de risco. Note-se que não se trata, aqui, de um obsessão induzida por razões diretamente patológicas; o comportamento de risco é mantido mesmo quando a mente, racionalmente, reconhece os perigos nele implicados.

A preocupação contemporânea com o fenômeno teve sua origem, naturalmente, na epidemia de HIV/AIDS. Sem cura ou tratamento eficaz por muitos anos, a transmissão da enfermidade não ocorria, geralmente, por atos e eventos independentes da vontade da pessoa contaminada. Como os valores modernos não podem aceitar, por conta de seu iluminismo otimista, que a prática sexual seja induzida diretamente por fatores que estão além da vontade individual, restava admitir que a consciência humana, mesmo posta diante de um risco evidente, preferia andar à beira da precipício, tal como o "peregrino" de Segneri.

Hoje, contudo, esforços crescentes de engenharia social levaram o conceito de comportamento de risco muito além do campo sexual. Práticas alimentares de crianças, hábitos sexuais de adolescentes, vícios adultos, reações ao estresse ou mesmo o suicídio de militares são estudados sob a perspectiva do comportamento de risco.

Uma rápida análise dessa literatura psicológica mostra, contudo, um beco sem saída. Como os seres humanos modernos, por definição, são sempre bons e racionais, a única explicação para um comportamento de risco precisa ser externa. Sendo externa, ela limita o livre arbítrio do sujeito e, por decorrência, a própria idéia de um comportamento que deliberadamente assume riscos.

Segneri não sofre com esses dilemas. O problema é a fraqueza humana, incapaz de caminhar mesmo em uma estrada plana.


"Te lleva tu alvedrio a unión con Dios o con el bruto impio"


Juan de Rojas. Representaciones de la Verdad Vestida, Mysticas, Morales y Alegoricas sobre las Siete Moradas de Santa Teresa de Jesus, Gloria del Carmelo, y Maestra de las Primitiva Observancia. Madrid, 1679. Terceras Moradas.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

quia non sumus consumpti

Considera, che sarebbe di un Pellegrino, il quale havendo caminato tutta una notte, si accorgesse sù'l far del dì havere caminato continuamento sù l'orlo di un orrendissimo precipizio. Como gelaria seu sangue! Como renderia graças a Deus! Assim seria se Deus te fizesse ver o sumo perigo. Deverias ser grato por tanto. Que seria se tal Peregrino se, conhecido o perigo, voltasse a caminhar sobre o precipício. Não mereceria ser abandonado? E tu, por que retornas aos pecados antigos? Não conviria que o Peregrino mantivesse a maior distância possível do precipício? Deus ordena aos anjos que te protejam, pois em tua via haverá acidentes, desvios e obstáculos, mas e se tu procuras os ínvios caminhos, quando os planos, eles mesmos, têm seus perigos? Vi sono strade più piane, più pulite, più publiche delle piazze e pura ancora in esse si sdrucciola molte volte, ancora in esse si cade, tanta è l'umana fiachezza.

(marzo xxii .... Miserricordia Domini... Ihr. 3.22)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

molte ingiure di sua gran confusione

Não escapava a Segneri os perigos de sua escolha vocacional e de seu talento literário. Celebrado pelas populações que se reuniam para ouvir suas prédicas em praças e estradas e recolhiam mínimas relíquias, como a água que restava em seu copo, ele praticava uma rotina de atos de humilhação, como lavar os pés de seus servos e a flagelação ritual. As editores pediam suas obras para publicação, mas bastava uma observação de seu confessor para que deixasse morrer o assunto. Atos como a pintura de seu retrato em uma muralha urbana perto de Gênova ou o hábito de lhe chamarem de "Padre Santo" lhe causavam grande preocupação. Com o tempo, evitava demonstrações públicas de sacrifício pessoal. Por vezes, entrava em uma cidade em uma carruagem, depois de ter percorrido todo o caminho a pé. Para um religioso sincero, os sinais de glória temporal podem ser preocupantes. Mais velho, após a missa, por vezes pedia a um irmão que o flagelasse e lhe dissesse em face as injúrias mais desconcertantes.

Raguagglio, capítulos LVIII a LXI.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

D'o rece sudóre eram inundat

Regra de São Benedito, "Sobre o trabalho do dia":


A preguiça é a inimiga da alma; assim os irmãos devem trabalhar com as mãos durante certo tempo, em outros, ocupar-se com leituras devotas. O tempo para trabalho e leitura deve ser propriamente ordenado. Da Páscoa às calendas de outubro, devem sair para o trabalho da primeira à quarta hora, mas da quarta à sexta devem ler. Depois da sexta hora, quando se levantarem da mesa, deixe que descansem e seus leitos em completo silêncio. Se ninguém quiser ler para si mesmo, deixe que leiam sem perturbar os demais. Depois do meio da oitava hora trabalhe-se até as Vésperas.

Se a necessidade do lugar ou a pobreza exigirem que eles mesmos façam a colheita, não deixe que se entristeçam, pois então eles serão monges em verdade se vivem pelo trabalho de suas mãos, como fizeram nossos antepassados e os Apóstolos. Embora, em favor dos fracos de coração, deixe que as coisas sejam feitas com moderação.

Das calendas de outubro até o início da Quaresma, deixe que leiam até completar-se a segunda hora. Será então lido o terço e todos trabalharão até a nona hora. Quando for dado o primeiro sinal da nona hora, devem deixar o trabalho e estar prontos para o segundo sinal. Após a refeição, deixa que leiam os salmos.

Durante a estação da Quaresma, leiam pela manhã até a quinta hora e até a décima hora trabalharão como foi imposto. Nesses dias, receberão livros da biblioteca e deixe que leiam em ordem. Estes livros serão dados no início da estação da Quaresma.

Acima de tudo, faz com que um ou dois dentre os mais velhos sejam indicados para andar pelo monastério e vejam que os irmãos se dediquem à leitura devota, pois um irmão ocioso pode ser encontrado sem nada fazer, sem atender à leitura, o que não aproveita para si mesmo e perturba os demais. Se algum desses for encontrado (Deus proíba) seja ele punido uma vez e de novo. Se não se corrige, seja punido pela Regra de modo que os demais temam. Não deixa que um irmão se junte a um irmão fora da ocasião determinada.

Nos domingos, deixa que todos se devotem à leitura, a não ser aqueles que têm tarefas. Se algum for tão sem cuidado e preguiçoso que não medite nem leia, algum trabalho lhe seja dado para que não fique à toa.

Um emprego seja dado aos fracos e enfermos para que não estejam ociosos, mas sem que sejam carregados com esforço e recusem. Sua fraqueza será levada em conta pelo abade."

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ora et labora

No antigo calendário dos santos, o dia 21 de março estava reservado a São Benedito (480-547), o fundador do peculiar monasticismo do Ocidente. Após duzentos anos de revolução industrial e de estado laico, monges e conventos parecem irreversivelmente tisnados, um e outro, como fanáticos e como antros de fanáticos religiosos, imprestáveis para a sociedade e hostis ao convívio entre os homens. Uma leitura mais atenta da biografia de São Benedito (cujo primeiro exemplar é atribuído a São Gregório Magno e escrita em 593) e dos primeiros séculos do monasticismo ocidental não justificaria, contudo, tal repulsa. O recolhimento diante da vulgaridade do mundo, por exemplo, não pode mais ser considerado um gesto estranho e inopinado: basta meia hora de exposição à mídia popular para que uma discreta vontade de se refugiar no campo se instale.

Muitos dirão que se trata de uma rejeição à liberdade de expressão, mas este argumento é falacioso, pois supõe que a mídia popular seja um puro evento de opinião. Não é. É uma operação de venda, são campanhas de propaganda e não é por acaso que a publicidade seja a responsável direta pela maioria dos movimentos em favor da liberdade de expressão. Para evitar a exposição a um ridículo desagradável, a melhor alternativa pode ser mesmo evitar a televisão ou recolher-se a um local fora do alcance dos jogos de gladiadores, dos mercados de escravos, da corrupção, etc. Tal como fez Benedito naqueles anos de barbárie.

Também não se nota com o devido rigor que a regra de Benedito inclui o trabalho, objeto de desprezo sob o escravismo antigo, cujo produto reverteria para os próprios homens recolhidos. Ao contrário do que sugerem as fantasias tardias do capitalismo, o monge, originalmente, não era um vagabundo. Podia não ser um empresário inovador, mas também não era um proletário. Ao contrário do monge do Oriente, um parasita sustentado pelas comunidades, o monge beneditino produzia riqueza e, talvez, riqueza demais.

Para o Estado, sempre sedento de impostos e de poder, aqueles homens recolhidos, que pouco se importavam com as mitologias seculares, orando e trabalhando, ilustrados por uma ideologia consistente, eram uma ameaça palpável. Como controlaremos a populaça por meio do pão e do circo, se perguntavam os governantes, se estes homens têm o seu próprio pão e não se interessam pelo circo? Se não têm a menor intenção de pagar o preço da proteção a uma máfia governamental?

O monasticismo ocidental, na verdade, impõe uma fronteira perigosa para as palavras de Jesus sobre o que é de César. Por fim, como justificar aos olhos dos homens as fraquezas e ambiguidades da política matrimonial e sexual dos monarcas quando havia o termo de comparação com poder sem sexo dos conventos e monastérios? O governo, ontem, hoje e sempre, é o inimigo número um dos homens que se recolhem. Estes sabem produzir seu próprio pão, não acreditam em paraísos terrestres e rejeitam a vulgaridade patética dos príncipes.

No Ocidente, Felipe, o Belo, rei de França, ganhou essa batalha: crucificou e queimou os monges guerreiros. Nada havia, contudo, de fatal nessa vitória, nem ela supera a força dos que se retiram, oram e laboram.

Tiziano. Cavaleiro da Ordem de Malta. (c.1510)