sábado, 25 de junho de 2011

De unde oar' vine a ta reverie?

Raramente tal consideração é explícita, mas o caráter sagrado de um vitória atlética na Antiguidade também decorria da percepção do inevitável sofrimento que o treinamento envolve. Nos tempos modernos, o esporte é visto como componente de um sistema de valores hedonistas, mas uma coisa é competir; outra, vencer e vencer sempre. Nesse ponto, há uma correspondência evidente com o sacrifício corporal exigido pela Fé.

A síndrome hoje conhecida como supertreinamento (overtraining, em inglês), decorrente de uma dedicação compulsiva ao exercício, é justamente composta por prostração, dores permanentes pelo corpo, feridas nas pernas, redução no desempenho esportivo, insônia, dores de cabeça, baixa imunidade, irritabilidade, depressão, perda do apetite, contusões frequentes, entre outros. Uma forma de flagelação, como se nota com facilidade. (http://sportsmedicine.about.com/cs/overtraining/a/aa062499a.htm).

O exercício físico necessário para triunfar nos esportes - deixando de lado, aqui, formas de estimulação química - pode se transformar em martírio. Não é raro que o atleta com tal síndrome busque ainda mais treinamento e mais sofrimento. O corpo se torna, ele mesmo, um obstáculo para obter o prêmio do Espírito - a vitória. Não existe sinal, contudo, desta associação mais direta no texto de Segneri. Parece seguir literalmente o paradigma poético dos Antigos.



O atlético "Cristo atado à Coluna", de Manuel Chili, o Caspicara (1723-1796).

sábado, 11 de junho de 2011

Dicend: asculta, eu te iubescu

Como ressalta o comentário bíblico de Matthew Henry, todo o trecho da primeira epístola aos Coríntios examinado pela nota de Segneri é marcado por imagens retiradas das competições esportivas da Antiguidade. A sensibilidade dos habitantes de Corinto é natural, pois os Jogos Ístmicos eram celebrados em sua vizinhança desde o ano 582 a.C, sendo suprimidos como ritual pagão apenas no século IV, sob Teodósio I. No tempo do Apóstolo, constituía, portanto, uma tradição multisecular.

No versículo I Coríntios, 9.27, chega mesmo a dizer que o pregador da palavra de Deus deve submeter seu corpo à disciplina para que não seja "reprovado". O termo grego empregado, adokimos, é de natureza esportiva: descreve o descarte, pelo juiz, de quem não tem condições de concorrer. Segneri, por sua vez, sugere que Cristo mesmo seja o grande corredor, o grande atleta.

O caráter sacro do vencedor da competição esportiva era também uma imagem corrente e muito de sua solenidade pode ser atribuída à poesia de Píndaro (522 a. C. - 443 a.C). Suas odes são o melhor registro da nobre visão da Antiguidade sobre o atleta vencedor, capaz de levar a fama eterna para si e para os seus:

(50) ... Zeus concede o bem e o mal, Zeus o senhor de tudo.
Mas honras tais como estas bem recebem a alegria do triunfo,
coberta com o delicioso mel da canção.
(55) Deve o homem disputar e contender nos jogos
se aprendeu com a estirpe de Cleônicos.
O longo treino de seus homens não se esconde na cega escuridão
nem o pensamento de seu custo estremece sua devoção à esperança.
Celebro Píteas também entre os lutadores que domam os membros
(60) com hábeis mãos guiando retamente os golpes de Filácidas
cuja mente é sem igual.
Toma uma guirlanda para ele e um fio da lã mais fina
envia-os com esta alada canção.

Ode Ístmica 5. Para Filácidas de Egina, vencedor do pancrácio em 478 a.C.




Não falta a Segneri, contudo, uma referência local ao heroísmo de uma competição esportiva, transparente no uso do termo palio. Como se sabe, trata-se de uma tradição medieval de fundo religioso, uma corrida de cavalos sem sela, realizada em Asti ao menos desde o ano 1275 e em várias outras cidades italianas. Palio é o nome de uma peça de roupa, usada em Roma como manto, que marcava o local do fim da corrida e era também o prêmio do vencedor.



Imagem do Palio de Asti. Século XVIII.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Sic currite, ut comprehendatis

Considera, che questa vita è quasi una via, nella quale si corre al palio, ch'è la gloria del Paradiso. Todos os homens são chamados a tal corrida, mas quantos seguem parados! Não diz o Apóstolo "aqueles que estão no estádio", mas "aqueles que correm". Inumeráveis são os que evitam um passo para longe do ócio, da crapulice, das comédias, dos amores e de outro entretenimentos. Se na corrida apenas um vence, o que será dos que nem correm? Só o perseverante vence. Tu mal começas uma devoção e logo a deixas. Sinal ruim de que pertences ao número dos infelizes. Como o Apóstolo disse, não basta correr, mas correr para vencer. No serviço de Deus há que fatigar-se. Seguir na corrida vencida por Patriarcas, Profetas, Mártires e, sobretudo, Cristo. E così vedi che bisogna anche correre a questo fine di havere il palio, e conseguentemente non restar mai di correre fin'a tanto, che non arrivi.

(marzo xviii, Nescitis quod hii qui in stadio...  I Coríntios. 9.24 )