sábado, 31 de dezembro de 2011

Oh che vergogna sara mai la mia

Nanti continua examinando em detalhe o comportamento de Segneri diante da consciência aguda de ser um pecador e das dúvidas sobre sua salvação. As penitências mais drásticas podem surpreender um leitor moderno, mas a narrativa é equilibrada e realista. Segneri estende-se, por exemplo, pelo que poderia ser descrito como fantasias de martírio, como o desejo de ser raptado e aprisionado por bandoleiros (um fato ordinário na Itália de então) ou ser capturado pelos turcos e feito escravo.

As menções aos cilícios e às flagelações rotineiras são compensadas pelo reconhecimento de que dormia as seis horas regulares e não tinha condições de manter um jejum prolongado. Certa vez, durante uma missão, deixou de comer e teve febre. Depois do episódio, manteve a escala regular de refeições, abstendo-se apenas de "pratos mais saborosos". Da mesma maneira, usava uma roupa rude, feita de pelo de cabra, quando em missões ou no seu trabalho diário da Ordem, mas quando foi forçado a viver em Roma, o calor do verão o levou a mudar sua vestimento. O hábito simples que usava, sem maior proteção, fazia-o padecer no inverno. Ele mesmo reconhecia sua sensibilidade ao frio.

Após seu falecimento, encontraram uma corrente de anéis de ferro aguçados com trinta e cinco palmos: com ela envolvia praticamente todo o seu corpo.


Raguagglio, capítulos LXII a LXV.



Cilício italiano do século XIX

Ca fantome de mari secoli pe eroi loru jelesc

Não se pode negar a Segneri um fino sentido de ironia, diretamente ligada à sua longa observação dos seres humanos. O amor de Deus, por exemplo, expresso na Encarnação, imediatamente põe em questão o amor dos Homens. Amar a Deus ou apreciar o amor de Deus pode ser problemático para muitos, mas esses mesmos muitos amam com facilidade um cavalo ou um cachorro. Ou um plátano.

O amor de Deus também revela uma estranha troca: que Deus tem a ganhar com o amor pelos Homens? Doar uma jóia, como ele escreve, não diminui a jóia; mas trocá-la por um pedaço de pão certamente a avilta. Deus, no entando, trocou seu Filho pelas almas dos Homens.

Como é possível entender o amor de Deus? Apenas os santos, no Paraíso, o compreendem, diz Segneri.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Sic Deus dilexit Mundun

Considera attentamente l'altezza somma di questa sentenza, la quale uscita dalla bocca di Cristo, contiene in se più miracoli, che parole. Que Deus ame a si mesmo, não é de espantar, mas que ame algo fora de si é estupendíssimo, tanto mais quanto se considera quanto de bom há fora de si mesmo. Mesmo as coisas que, em si estão mortas, em Deus estão vivas. Ele pode iluminar sem o Sol, pode refrigerar sem a água. Em si, tem todas as perfeições. Que grande prodígio é que ame algo fora de si! E ama o gênero humano! Muitos amam coisas estranhas: pássaros, cães, cavalos. Houve um que se enamorou de um tronco de plátano. Mesmo que isso acarretasse alguma servidão, algum benefício colhiam. Mas Deus, que benefício pode colher de seu amor? E amou o Mundo, a todos; não a alguns. E também não ama, mas amou, desde sempre, desde a eternidade. E deu seu Filho, que era Deus. Não como os homens. Um Filho unigênito. E deu. Uma jóia rica pode ser doada a um personagem vil sem aviltá-la; mas não se pode, sem aviltá-la, dar em troca de nada ou por chumbo ou um pedaço de pão. E Deus deu seu Filho em troca da alma dos Homens. É um amor compreendido apenas pelos Santos, que já estão no Céu. Che son le quattro dimensioni medesime, considerate da noi nell'amor Divino, conforme il lume somministratoci da queste gran parole di Cristo: Sic Deus dilexit Mundum, ut filium suum unigenitum daret, che ben potrai meditare per tutta la tu vita con perpetuo pascolo.

(marzo xxv ... Sic Deus dilexit.... João, 3, 16).

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Fii vostri vor ascunde a lor frunte in terina

Sobre Romanos 8.17, o trecho comentado por Segneri no século XVII, escreveu Karl Barth no século XX:

"Nossa humana presente existência - ela mesma não eterna, mas trazendo em si a eternidade não nascida - é encoberta pelo sofrimento, como um manto escuro, por uma espada desembainhada, por uma parede alta. Em si mesma, nossa vida é contestável; não há nela repouso, pois, sendo finita, é definida e constituída pela ambiguidade. Nossas experiências das limitações temporais de nossa existência, do estreito vazio de nossos poderes, das grandes e pequenas tribulações que, como fragmentos da Terra, devemos suportar em dor, são apenas sombras de nossa finitude. O que cedo ou tarde encontraremos como barreira final é a Dor em nossa dor. Não devemos permanecer em ignorância que a este ponto Deus dirige Sua questão a nós e que para ele também Ele prepara a Sua resposta. No Espírito, o segredo de Deus não pode ser escondido. No Espírito, podemos perceber o sentido de nossa vida, manifestado como sofrimento. No Espírito, sofrimento, suportado e aceito, pode se tornar nosso avanço em direção à glória de Deus. Esta revelação do segredo, esta compreensão de Deus no sofrimento é a ação de Deus em nós. Tal compreensão é o testemunho do Espírito, pelo qual é permitido à Verdade ser a Verdade e também a garantia de que somos filhos de Deus e, como tais, herdeiros de sua glória." (Epístola aos Romanos, OUP, 1968, pág 301)

Ipse Spiritus testimonium

Considera, che testimonianza sia questa, che lo Spirito Santo ci rende, di esse noi figliuoli di Dio. Não é eterna, como aquela que Cristo recebeu no Jordão; mas é interna; pois que se diz que a dá pela via do Espírito, não dos olhos ou dos ouvidos. Ela consiste no íntimo senso de amor filial. Opera por amor, não por temor. Sua nobre consequência é ser herdeiro de Deus. Muito melhor que ser herdeiro terreno, pois só herdam quando morto é o pai. A outra herança é o Pai ele mesmo. Nem se divide com outros filhos. E somos herdeiros também de Cristo; coisa maravilhosa: que outro filho natural buscou outros herdeiros para seu Pai? Mas esta herança celestial não se conquista como as terrenas, sem mérito, sem busca, às vezes dormindo. É preciso conquistá-la. Se queres reinar com Cristo, precisas sofrer com Cristo. Benche quando mai dovrai tu patire una minima particella di ciò c'hà patito Cristo? Patirai con Cristo, ma non patirai come Cristo.

(marzo xxiv...Ipse Spiritus testimonium reddit... Rom. 8. 17)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Dar Rumani nu vor pacea

Lê-se na internet que, dentre os artefatos produzidos pelo homem e preservados pela História, os mais numerosos são os potes de maquiagem do antigo Egito. Milhões jazem espalhados como lixo pelos desertos em torno do rio Nilo, um mudo testemunho da vaidade e também da indústria humana. O prestígio dessa atividade é tamanho que recentemente fabricantes franceses de cosméticos buscaram recuperar suas técnicas e seus desenhos.

O esforço de tornar eterno o efêmero esbarrou, contudo, em realidades mais prosaicas: boa parte das substâncias cosméticas usadas no antigo Egito provocam sérias intoxicações por metais ou irritações cutâneas intoleráveis para os padrões sanitários modernos.

Este é apenas um exemplo da observação precisa de Segneri, baseada em um texto célebre do Evangelho. Adorar as coisas desse mundo, para o homem, é, na verdade, adorar as coisas de apenas um século, talvez menos. Os padrões de beleza, de consumo, de luxo, de ostentação mudam constantemente. O Biltmore Estate, na Carolina do Norte, foi construído como exibição de fortuna privada, passou a museu e está reduzido a um hotel. As ilusões amadas pelos homens de um século são irreconhecíveis para os homens de outro século. Cigarros já foram considerados sinal de riqueza e sofisticação. Amar as coisas desse mundo é amar coisas que estão condenadas à morte ou ao ridículo.

A eternidade tão ambicionada pelos homens, a extensão ou o sentimento da extensão temporal, pode ser apenas sugerida pelas coisas que são eternas, como Deus. Um contemporâneo de Segneri escreveu, no último livro de sua obra sobre ética, que o amor intelectual de Deus é eterno e mais: "do terceiro gênero de conhecimento necessariamente surge o amor de Deus. Deste tipo de conhecimento nasce o prazer acompanhado pela idéia de Deus como causa, ou seja, o amor de Deus; não enquanto o imaginamos presente, mas enquanto o entendemos como eterno".




Representação contemporânea da maquiagem egípcia.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Quicunq volueriti amicus

Considera, che Secolo è una misura di ciò che passa, e misura massima. Primeiro é a hora, depois o dia, depois a semana, depois o mês, depois o ano, depois vem o século. E é nesse tempo que se gozam as coisas: um século só. Deus, ao contrário, é imortal e imutável, não se submete a nenhuma medida do tempo. Quais bens preferes? Os do século? Ou os eternos? Seria impossível duvidar da escolha, não fossem tantos os que preferem o século. Vêem o presente, não o futuro. Quem é amigo do século, é inimigo de Deus. Veja que não estar no século, mas ser amigo do século. Ma come mai potrai giungere a questo stesso [a lei de Deus]?Col pensare spesso fra te, che cosa sono alla fine tutti que' beni, che il Secolo ti può dare, i suoi piaceri, le sua richezze, i suoi onori. Se pur son beni, sono al più lungo tutti beni di un Secolo.

(marzo xxiii... Quicunq volueriti amicus... Iac.4.14)

* (A passagem é Tiago 4, 4)

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Eu me opriiu pe valea bogata in morminte

A sofisticação psicológica das notas de Segneri só podem ser explicadas por sua longa e calculada observação do comportamento humano. A atitude de seu "peregrino", sempre andando na beira do abismo, mesmo quando conhece a dimensão do abismo, por muitas décadas foi compreendida em termos morais ou atribuída a forças ocultas. Apenas recentemente seu caráter obsessivo recebeu uma descrição científica sob o conceito de comportamento de risco. Note-se que não se trata, aqui, de um obsessão induzida por razões diretamente patológicas; o comportamento de risco é mantido mesmo quando a mente, racionalmente, reconhece os perigos nele implicados.

A preocupação contemporânea com o fenômeno teve sua origem, naturalmente, na epidemia de HIV/AIDS. Sem cura ou tratamento eficaz por muitos anos, a transmissão da enfermidade não ocorria, geralmente, por atos e eventos independentes da vontade da pessoa contaminada. Como os valores modernos não podem aceitar, por conta de seu iluminismo otimista, que a prática sexual seja induzida diretamente por fatores que estão além da vontade individual, restava admitir que a consciência humana, mesmo posta diante de um risco evidente, preferia andar à beira da precipício, tal como o "peregrino" de Segneri.

Hoje, contudo, esforços crescentes de engenharia social levaram o conceito de comportamento de risco muito além do campo sexual. Práticas alimentares de crianças, hábitos sexuais de adolescentes, vícios adultos, reações ao estresse ou mesmo o suicídio de militares são estudados sob a perspectiva do comportamento de risco.

Uma rápida análise dessa literatura psicológica mostra, contudo, um beco sem saída. Como os seres humanos modernos, por definição, são sempre bons e racionais, a única explicação para um comportamento de risco precisa ser externa. Sendo externa, ela limita o livre arbítrio do sujeito e, por decorrência, a própria idéia de um comportamento que deliberadamente assume riscos.

Segneri não sofre com esses dilemas. O problema é a fraqueza humana, incapaz de caminhar mesmo em uma estrada plana.


"Te lleva tu alvedrio a unión con Dios o con el bruto impio"


Juan de Rojas. Representaciones de la Verdad Vestida, Mysticas, Morales y Alegoricas sobre las Siete Moradas de Santa Teresa de Jesus, Gloria del Carmelo, y Maestra de las Primitiva Observancia. Madrid, 1679. Terceras Moradas.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

quia non sumus consumpti

Considera, che sarebbe di un Pellegrino, il quale havendo caminato tutta una notte, si accorgesse sù'l far del dì havere caminato continuamento sù l'orlo di un orrendissimo precipizio. Como gelaria seu sangue! Como renderia graças a Deus! Assim seria se Deus te fizesse ver o sumo perigo. Deverias ser grato por tanto. Que seria se tal Peregrino se, conhecido o perigo, voltasse a caminhar sobre o precipício. Não mereceria ser abandonado? E tu, por que retornas aos pecados antigos? Não conviria que o Peregrino mantivesse a maior distância possível do precipício? Deus ordena aos anjos que te protejam, pois em tua via haverá acidentes, desvios e obstáculos, mas e se tu procuras os ínvios caminhos, quando os planos, eles mesmos, têm seus perigos? Vi sono strade più piane, più pulite, più publiche delle piazze e pura ancora in esse si sdrucciola molte volte, ancora in esse si cade, tanta è l'umana fiachezza.

(marzo xxii .... Miserricordia Domini... Ihr. 3.22)

terça-feira, 18 de outubro de 2011

molte ingiure di sua gran confusione

Não escapava a Segneri os perigos de sua escolha vocacional e de seu talento literário. Celebrado pelas populações que se reuniam para ouvir suas prédicas em praças e estradas e recolhiam mínimas relíquias, como a água que restava em seu copo, ele praticava uma rotina de atos de humilhação, como lavar os pés de seus servos e a flagelação ritual. As editores pediam suas obras para publicação, mas bastava uma observação de seu confessor para que deixasse morrer o assunto. Atos como a pintura de seu retrato em uma muralha urbana perto de Gênova ou o hábito de lhe chamarem de "Padre Santo" lhe causavam grande preocupação. Com o tempo, evitava demonstrações públicas de sacrifício pessoal. Por vezes, entrava em uma cidade em uma carruagem, depois de ter percorrido todo o caminho a pé. Para um religioso sincero, os sinais de glória temporal podem ser preocupantes. Mais velho, após a missa, por vezes pedia a um irmão que o flagelasse e lhe dissesse em face as injúrias mais desconcertantes.

Raguagglio, capítulos LVIII a LXI.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

D'o rece sudóre eram inundat

Regra de São Benedito, "Sobre o trabalho do dia":


A preguiça é a inimiga da alma; assim os irmãos devem trabalhar com as mãos durante certo tempo, em outros, ocupar-se com leituras devotas. O tempo para trabalho e leitura deve ser propriamente ordenado. Da Páscoa às calendas de outubro, devem sair para o trabalho da primeira à quarta hora, mas da quarta à sexta devem ler. Depois da sexta hora, quando se levantarem da mesa, deixe que descansem e seus leitos em completo silêncio. Se ninguém quiser ler para si mesmo, deixe que leiam sem perturbar os demais. Depois do meio da oitava hora trabalhe-se até as Vésperas.

Se a necessidade do lugar ou a pobreza exigirem que eles mesmos façam a colheita, não deixe que se entristeçam, pois então eles serão monges em verdade se vivem pelo trabalho de suas mãos, como fizeram nossos antepassados e os Apóstolos. Embora, em favor dos fracos de coração, deixe que as coisas sejam feitas com moderação.

Das calendas de outubro até o início da Quaresma, deixe que leiam até completar-se a segunda hora. Será então lido o terço e todos trabalharão até a nona hora. Quando for dado o primeiro sinal da nona hora, devem deixar o trabalho e estar prontos para o segundo sinal. Após a refeição, deixa que leiam os salmos.

Durante a estação da Quaresma, leiam pela manhã até a quinta hora e até a décima hora trabalharão como foi imposto. Nesses dias, receberão livros da biblioteca e deixe que leiam em ordem. Estes livros serão dados no início da estação da Quaresma.

Acima de tudo, faz com que um ou dois dentre os mais velhos sejam indicados para andar pelo monastério e vejam que os irmãos se dediquem à leitura devota, pois um irmão ocioso pode ser encontrado sem nada fazer, sem atender à leitura, o que não aproveita para si mesmo e perturba os demais. Se algum desses for encontrado (Deus proíba) seja ele punido uma vez e de novo. Se não se corrige, seja punido pela Regra de modo que os demais temam. Não deixa que um irmão se junte a um irmão fora da ocasião determinada.

Nos domingos, deixa que todos se devotem à leitura, a não ser aqueles que têm tarefas. Se algum for tão sem cuidado e preguiçoso que não medite nem leia, algum trabalho lhe seja dado para que não fique à toa.

Um emprego seja dado aos fracos e enfermos para que não estejam ociosos, mas sem que sejam carregados com esforço e recusem. Sua fraqueza será levada em conta pelo abade."

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Ora et labora

No antigo calendário dos santos, o dia 21 de março estava reservado a São Benedito (480-547), o fundador do peculiar monasticismo do Ocidente. Após duzentos anos de revolução industrial e de estado laico, monges e conventos parecem irreversivelmente tisnados, um e outro, como fanáticos e como antros de fanáticos religiosos, imprestáveis para a sociedade e hostis ao convívio entre os homens. Uma leitura mais atenta da biografia de São Benedito (cujo primeiro exemplar é atribuído a São Gregório Magno e escrita em 593) e dos primeiros séculos do monasticismo ocidental não justificaria, contudo, tal repulsa. O recolhimento diante da vulgaridade do mundo, por exemplo, não pode mais ser considerado um gesto estranho e inopinado: basta meia hora de exposição à mídia popular para que uma discreta vontade de se refugiar no campo se instale.

Muitos dirão que se trata de uma rejeição à liberdade de expressão, mas este argumento é falacioso, pois supõe que a mídia popular seja um puro evento de opinião. Não é. É uma operação de venda, são campanhas de propaganda e não é por acaso que a publicidade seja a responsável direta pela maioria dos movimentos em favor da liberdade de expressão. Para evitar a exposição a um ridículo desagradável, a melhor alternativa pode ser mesmo evitar a televisão ou recolher-se a um local fora do alcance dos jogos de gladiadores, dos mercados de escravos, da corrupção, etc. Tal como fez Benedito naqueles anos de barbárie.

Também não se nota com o devido rigor que a regra de Benedito inclui o trabalho, objeto de desprezo sob o escravismo antigo, cujo produto reverteria para os próprios homens recolhidos. Ao contrário do que sugerem as fantasias tardias do capitalismo, o monge, originalmente, não era um vagabundo. Podia não ser um empresário inovador, mas também não era um proletário. Ao contrário do monge do Oriente, um parasita sustentado pelas comunidades, o monge beneditino produzia riqueza e, talvez, riqueza demais.

Para o Estado, sempre sedento de impostos e de poder, aqueles homens recolhidos, que pouco se importavam com as mitologias seculares, orando e trabalhando, ilustrados por uma ideologia consistente, eram uma ameaça palpável. Como controlaremos a populaça por meio do pão e do circo, se perguntavam os governantes, se estes homens têm o seu próprio pão e não se interessam pelo circo? Se não têm a menor intenção de pagar o preço da proteção a uma máfia governamental?

O monasticismo ocidental, na verdade, impõe uma fronteira perigosa para as palavras de Jesus sobre o que é de César. Por fim, como justificar aos olhos dos homens as fraquezas e ambiguidades da política matrimonial e sexual dos monarcas quando havia o termo de comparação com poder sem sexo dos conventos e monastérios? O governo, ontem, hoje e sempre, é o inimigo número um dos homens que se recolhem. Estes sabem produzir seu próprio pão, não acreditam em paraísos terrestres e rejeitam a vulgaridade patética dos príncipes.

No Ocidente, Felipe, o Belo, rei de França, ganhou essa batalha: crucificou e queimou os monges guerreiros. Nada havia, contudo, de fatal nessa vitória, nem ela supera a força dos que se retiram, oram e laboram.

Tiziano. Cavaleiro da Ordem de Malta. (c.1510)

domingo, 25 de setembro de 2011

Asculta-me, sfântu preotu; asculta-me parinte

A posição alcançada pelo consumo de bens materiais na sua escala de valores talvez ofereça o contraste mais dramático entre a modernidade e os sistemas éticos e religiosos do passado. Desde 1953, o consumo nunca representou menos do que 60% da economia dos Estados Unidos da América e na década atual aproxima-se do patamar de 70%. Tão ubíqua é a presença do consumo na vida social que maiores gastos com publicidade nem são necessários. Ainda nos Estados Unidos, eles têm se mantido estáveis, como propoção do produtor interno bruto, desde o início do século XX (http://www.galbithink.org/ad-spending.htm). É desnecessário notar aqui os aspectos grotescos de uma sociedade que funciona sob tal imperativo. A cada ano, por exemplo, milhões de animais domésticos são abandonados e sacrificados, uma vez que deixam de cumprir suas funções emocionais e estéticas.

Por sua vez, a idéia (e o sentimento) de um balanço mais equilibrado entre a busca de bens materiais e espirituais não decorre inexoravelmente de um marco confessional. Desde a década de 1990, vários movimentos de repulsa ao consumismo e ao estiolo de vida moderno vêm se organizando a partir do chamado Downshifting Manifesto. Parte do movimento Verde, seu objeto específico é reduzir a relação das pessoas com o consumismo de massa (http://downshiftingweek.com/sitebuildercontent/sitebuilderfiles/DownshiftingManifesto2008.doc).

Não se trata de um movimento contra a civilização industrial: "uma pessoal frugal não é uma pessoa pobre". O objetivo é utilizar as facilidades da civilização industrial para viver melhor, em busca de outros propósitos na vida (http://www.thedownshifter.co.uk/frugality.html). Reduzir os "afãs e ansiedade", como sugere Segneri. Descobrir o próprio bem exige estudo.



sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Indicabo tibi ó homo

Considera, che niuna cosa a questo Mondo è più facile, che confondere il bene vero col falso. Questo è l’inganno, che mena tanto di Universo in rovina. Por isso é precio diligência no estudo e no conhecimento deste bem, que é o indicado por Deus. Ele requer um exame contínuo de tuas ações, tuas palavras, os afetos ainda mais ocultos, pois sobre ti darão sentença desapaixonada. Quão fácil é adular-te a ti mesmo! Se te julgares com rigor, como Deus te impõe, não serás por Ele julgado. E usa de misericórdia quando examinares o próximo: crês tu que seja amar a misericórdia pesar sutilmente a necessidade de teu próximo para ver se estás realmente instado a lhe prestar socorro? Deus, por fim, pede tua companhia, ambulare cum Deo tuo, por todo o tempo: subir também ao Calvário e não apenas no monte Tabor. A solicitude na busca dos bens humanos foi vedada por Cristo: porque quanto a estes basta uma razoável diligência, não se demanda ansiedade e afãs. Ma intorno al procacciamento di um bem Divino, quest’ansietà, quest’affano sono affetti lodevoli, purche nom vadano scompagnati già mai della confidenza, e però ricordati c’hai da far cum Deo tuo, il qual, como tale, mai non mancherà di datti forze a seguirlo, a obedirlo, a onorarlo, a piacergli, a resistere contro tutti coloro, che te lo vogliono togliere, e a racquistarlo.


(marzo xxi... Indicabo tibi ó homo ... Miquéias 6, 8).

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Imi va resplati vécure trecute cu amar

O comentário do dia 20 de março é sobre a espera; o santo do dia, nos tempos de Segneri, é São Joaquim, esposo de Santa Ana, pai de Maria, avô de Jesus. Nas gerações, portanto, um símbolo dessa espera; da graça, ainda distante, que se aproxima.

Joaquim e Ana não são mencionados pelos Evangelhos. Os fatos da tradição vêm do chamado Proto Evangelho de Tiago, um texto atribuído ao ano 145, e espelham, em boa medida, a história de Abraão e Sara. Um casal sem filhos até a velhice, quando o Senhor lhes concede a graça do nascimento de Maria. Os episódios da vida de Joaquim e Ana, assim como da criação da Maria, tiveram lugar de destaque nas tradições e na arte cristãs até que a Contra-Reforma, no século XVI, limitou a citação dos textos considerados apócrifos. Após o século XVIII, mesmo a posição de São Joaquim no calendário dos santos foi alterada.

Seja como for, a influência desta tradição é tão expressiva que encontrou seu caminho mesmo no Corão, cuja terceira sura recebe o nome de Joaquim (Imran) e estabelece a base para o culto de Maria no Islã. O verso 37 cita diretamente um episódio do capítulo 8 do Proto Evangelho de Tiago, quando Maria, sozinha no Templo, recebe o alimento de um anjo:

“Seu Senhor a aceitou benevolentemente e a educou esmeradamente, confiando-a a Zacarias. Cada vez que Zacarias a visitava, no oratório, encontrava-a provida de alimentos, e lhe perguntava: Ó Maria, de onde te vem isso? Ela respondia: de Deus!, porque Deus agracia imensuravelmente quem Lhe apraz.” (3:37)


quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Deseversita eu o vedeam

Notável a definição estabelecida por Segneri para a santidade. Não se trata apenas, sugere ele, de um assunto eclesiástico; também não se prende ao elenco de fatos espantosos ou miraculosos habitualmente descritos pelas vidas dos santos. Sua definição é existencial: a vida do santo é uma espera. Uma forma especial de espera.

Afinal, nossa vida, quase sempre, é definida por esperas. Nos tempos que vão, a vida nunca foi tão demarcada por esperas: pela passagem de cada ano de estudo, pelo progresso na carreira, pelas fases da vida familiar, nascimento, vida e morte, pelo contra-cheque ou pelo próximo prato de comida. A vida é feita de tempo, mas de um tempo que não controlamos, que não podemos interromper, acelerar, pular fases. É preciso esperar.

A vida de cada um depende daquilo que se espera: sucesso, triunfo, comida, prazer. E como se espera: com paciência, com angústia, com terror ou tremor. É uma espera particular que define o santo: a espera pelo melhor, pelo Paraíso depois do Juízo. O santo não tem pressa, nem se ocupa das coisas esperadas nesse mundo, pratos grosseiros, de acordo com Segneri. Querem apenas os manjares mais finos e, por isso, esperam, não buscam.


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

de miei affani testimoni ne sia Dio

O caráter militante de Segneri continua sendo registrado pelos capítulos finais do Raguagglio. No curso de suas Missões pouca atenção devota aos grandes locais, fazendo questão, ao contrário, de receber a todos e conversar com os mais humildes. Para um prelado com o seu prestígio em Roma, a atitude não deixava de chamar atenção.

Seu silêncio sobre suas desventuras e desgostos pessoais merece também uma curiosa e humana explicação. Quando alguém me confessa algo, dizia, uma angústia, um temor, uma preocupação, reservadamente, dou grande valor a esta atitude. Se, contudo, após falar comigo, esta pessoa comunica a mesma coisa a vários outros, noto que minha amizade não era tão preciosa. O mesma valia para Deus. Segeneri preferia comunicar apenas a Ele suas tribulações e assim manter uma "amizade especial".

Raguagglio, capítulos LIII a LVII.

sábado, 27 de agosto de 2011

qui fidem suam nunquam mutant

Considera, che cosa alla fin sia stata la vita di tutti i Santi sù questa terra: una aspettazione continua. Que fizeram, aqueles anteriores a Cristo, senão esperar; os que vieram depois, que fazem senão aguardar seu retorno. Primeiro veio como redentor, mais tarde virá como Consumador. O que há de ser tua vida: esperar. Esperar por um patrão que retorna de uma festa pode ser molesto, pode demorar, não se deve deixar sua casa, não se deve dormir. Não há o que fazer, contudo, pois os servos se acomodam ao senhor; não o senhor, aos servos. Considera, pois, porque os Santos são chamados Santos: nada tinham a ver com o Mundo, sempre aspiravam ao Ceú. Viver na Terra como peregrino, destacados do Mundo, homens sagrados, espirituais. Ainda que trates com os homens, ainda que te portes como eles, sê peregrino. E não tenhas pressa, não faças como os aqueles convidados que, sem paciência para esperar pelos Grandes, comem os pratos mais grosseiros e quando chegam os manjares mais suaves já não têm fome. Faz melhor aquele que jejua. Tua herança é o Paraíso: espera que esteja maduro. Agora é tempo de viver de Fé, consolar-se com a Fé, ajudar-se com a Fé. Assim, não perderás as coisas prometidas. Comunque siasi: chi è Pellegrino convien che più d'una volta si metta a rischio di morir sù le strade, per arrivare a menare la vita in Patria.

(marzo xx, Filii Sanctorum sumus... Tobias 2.18)

sexta-feira, 29 de julho de 2011

At si forte eadem est ulmo coniucta marito

Sobre a figura do casamento do elmo e da vinha, empregada por Segneri:

“Mas existem, creio, certos elementos retóricos de tipo botânico que se desenvolvem fora da esfera virgiliana. Nas páginas seguintes, gostaria de tratar do tradicional motivo do olmo e da vinha (sugerindo a verdadeira união do marido e esposa) como um topos distinto da literatura ocidental desde o primeiro século antes de Cristo até os tempos modernos. Como veremos, o topos do olmo praticamente não muda em seu significado marital de Catulo (87-58) a Heinrich Von Kleist (1777-1811). Ainda que ocasionalmente associado com motivos paralelos de significado similar e adquira conotações particulares nos primeiros tratados teológicos cristãos, assim como nos livros de emblemas da Renascença, ele constantemente sugere, para escritores de várias eras, uma idéia e um ideal de casamento e ilustra o fato de que, na literatura do Ocidente, é um lugar comum retórico verdadeiramente aere perenius. Peter Demetz, “O Olmo e a Vinha: notas sobre a história de um topos relativo ao casamento” Transactions and Proceddings of the Modern Laguage Association of America, vol 73, n. 5, dezembro de 1958.

A poesia de Catulo é o Carmen LXII. Em: http://rudy.negenborn.net/catullus/text2/l62.htm há o texto original e várias traduções. É vasta também a iconografia deste topos.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Cât sânge aste locuri setóse îngitira

Não é fácil resumir todas as implicações da comparação feita por Segneri entre a modéstia exigida daqueles que servem a Deus e o exemplo de São José, santo comemorado no dia 19 de março.

A hagiologia empregada no texto, por exemplo, é surpreendentemente precisa. A figura de São José, de fato, permaneceu ausente do culto católico por séculos, uma situação descrita de forma dramática por Sandra Miesel: “Imagine um mundo onde nenhum cristão recebe o nome de José, onde nenhuma igreja ou organização religiosa traz seu nome. Imagina São José ausente da Missa, do Breviário, do Calendário da Igreja e da Litania dos Santos. Nenhum sítio sagrado, nenhuma devoção especial, nenhum hino, nenhuma imagem própria, nenhum costume popular, nenhuma refeição festiva faz homenagem a São José. O mundo sem São José foi a Cristandade até o século XIV. Até esse ponto, São José foi completamente ignorado, reduzido a um carregador de estandarte no cortejo da Salvação” (Sandra Miesel. “Encontrando São José”, em CatholicCulture.org, 2002).

Por outro lado, Segneri omite cautelosamente as razões desse esquecimento. Ele nada teve a ver com alguma modéstia pessoal ou com uma reflexão moral sobre sua figura. Trata-se de uma conseqüência teológica inevitável da Encarnação, agravada pela rápida emergência do culto de Maria como a mãe de Deus. A necessidade de defender sua pureza fundamental deixava o seu casamento terreno em dúvida, uma vez que a lei judaica, por exemplo, não reconhece a validade de casamentos não consumados. Para complicar o cenário, era a lei romana que reconhecia o casamento meramente legal e a regular adoção dos filhos de terceiros, fonte de intermináveis abusos.

Não foi à toa, portanto, que a figura de São José feneceu na sombra por séculos. Um levantamento recente de sua imagem em iluminuras medievais mostra que em 10% dos casos as referências são mesmo pouco honrosas, repetindo a figura dos maridos enganados pelos deuses na mitologia grega.

Segneri também não examina em detalhe as razões do renascimento do culto de São José, ainda que, em seu tempo, sua expansão seguisse em ritmo acelerado, e que sua origem pudesse ser datada com precisão: a publicação, por Jean Gerson, das Considerações sobre São José em 1413, e o sermão de 8 de setembro de 1416, Jacob autem genuit Joseph (Mateus I, 16), perante o Concílio de Constança.

Muitas causas podem ser invocadas para tal renascimento. A mais razoável parece ser, contudo, um sentimento global de insegurança provocado pelas imensas crises humanas e políticas da segunda metade do século XIV. Naquele momento, em pleno Grande Cisma, com a Igreja dividida em facções combatentes, invocar o valor e a estabilidade da família exigia um novo tratamento da paternidade temporal. No caso específico, centrada sobre a imagem de São José. (Paul Payan, “Para reencontrar um pai. A promoção do culto de São José no tempo de Gerson”. Cahiers de Recherches Médiévales et Humanistes. 4, 1997).

Nesse ponto, por sinal, a elaboração de Jean Gerson e a menção de Segneri se alinham perfeitamente. O servidor da Igreja deve ser como José: trabalhador, modesto, mais preocupado em praticar o amor e cuidar de quem precisa do que na glória de linhagens ilusórias. Todos, afinal, somos filhos de Deus.



Georges de la Tour (1593-1652). São José Carpinteiro (c. 1640)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

De esci tu essecutor inaltelor decrete

Nas inflexões de um texto que soa convencional, transparece sua notável capacidade de observação humana. É verdade que Segneri foi aceito na Companhia ainda adolescente e conviveu por décadas com as realidades de uma instituição que era, ao mesmo tempo, religiosa e temporal, dominada pela absoluta autoridade papal. Ainda assim, surpreende a precisão dos sinais de desvios de fins e meios em uma organização composta, afinal, por homens.

O primeiro deles, o ressentimento das injúrias, aponta para a identificação entre os interesses da pessoa que ocupa uma posição de comando e os interesses da organização que dirige. É a deformação da satisfação simbólica de participar de uma ação coletiva, quando o dirigente se torna mais preocupado com palavras do que com atos. No caso, quando o prelado ofende-se mais com a má palavra do que com a má ação.

O segundo deles, o calor do interesse, aponta para a mudança de prioridades em uma organização complexa, quando seus fins internos se tornam mais importantes do que suas missões públicas. Para construir uma obra real, no mundo, nunca é a hora; para aumentar os recursos de sua casa, sempre é a hora.

O adjetivo notável foi empregado no primeiro parágrafo porque os sinais descritos por Segneri são os mesmos usados pela ciência social contemporânea para descrever os efeitos colaterais de qualquer processo de ação coletiva. Os benefícios simbólicos e materiais produzidos por tal ação tendem a ser distribuídos de forma mais favorável para os que lideram e comandam tais ações. A personalização da liderança e o desvio de finalidade são seus primeiros efeitos. A alma ativista de Segneri tinha pouca paciência com burocratas religiosos que apenas usam a Vinha do Senhor.


Capa de A Lógica da Ação Coletiva (1965), de Mancur Olson Jr., lição definitiva sobre os chamados incentivos seletivos apropriados pelos líderes de qualquer organização social.

domingo, 10 de julho de 2011

Omnes quae sua sunt quaerunt

Considera con qual tenerezza di affetto dovresti tu compatire al tuo buon Giesù, mentre tu vedi che tanto pochi sono al Mondo che pigliano la sua causa. Vejamos aqueles que professam servir ao Mundo, sacerdotes, predicadores, párocos, prelados, tantos homnes que se deram a Cristo. Estão em liga a favor de Cristo? Em muitos se contam os que estão enamorados de si mesmos. Amam a Cristo, o aprovam, o desejam e o louvam, mas não o procuram. Procedem de modo diverso nas causas de Cristo e nas próprias.

São dois sinais dessa diferença: o ressentimento das injúrias e o calor do interesse. Não se ofendem com sacrilégios e adultérios, mas com alguma ofensa ao nome de Cristo. Usam da Vinha do Senhor. Isto é despojar-se do seu? E depois faltam as rendas para alimentar os irmãos menores, a punir os rebeldes, a reprimir dos adversários. Muitos usam Jesus como manto para defender a própria honra. Buscam ser honrados pelo hábito e não pela santidade. A reputação de Cristo não deveria ser mantida pela piedade com os pobres, pela mansidão, pela modéstia, pela pureza? Cristo sempre recomendou a virtude, nunca o esplendor. Proponha a construção de um Seminário, de uma Igreja, de um Claustro, de um Monastério: respondem que não é a hora. É preciso decidir em conselho, esperar uma conjuntura propícia. Para aumentar a própria Casa, sempre é hora. É para a glória de Deus que se povoa a Igreja, dizem, mas desta glória Deus pouco cura. Ao contrário, Servire me fecisti in peccatis tuis (Is. 43.24). Não se deve dizer primeiro procurar a glória de Deus e depois a tua, mas apenas desejar a glória de Cristo.

Considera como no gloriosíssimo São José, o Senhor quis mostrar um homem que não foi por si, mas todo por Cristo. Deixou a Virgem sempre intacta, como faz o olmo que se esposa à vide. E depois da morte, ficou por séculos incógnito, inglorioso, esquecido da devoção dos povos. E ainda assim este será aquele Santo que tu deves eleger sumamente como Advogado para merecer esta graça que é a maior: não mais viver sobre a terra senão servindo a Cristo. Ma tu non hai da pregarlo che ti defenda, se non che da te stesso; che sei il nimico più crudele que habbi, mentre per vivere a te tu non vidi a Cristo.

(marzo xviiii... Omnes quae sua sunt quaerunt ... Filípicos, 2. 21)

sábado, 25 de junho de 2011

De unde oar' vine a ta reverie?

Raramente tal consideração é explícita, mas o caráter sagrado de um vitória atlética na Antiguidade também decorria da percepção do inevitável sofrimento que o treinamento envolve. Nos tempos modernos, o esporte é visto como componente de um sistema de valores hedonistas, mas uma coisa é competir; outra, vencer e vencer sempre. Nesse ponto, há uma correspondência evidente com o sacrifício corporal exigido pela Fé.

A síndrome hoje conhecida como supertreinamento (overtraining, em inglês), decorrente de uma dedicação compulsiva ao exercício, é justamente composta por prostração, dores permanentes pelo corpo, feridas nas pernas, redução no desempenho esportivo, insônia, dores de cabeça, baixa imunidade, irritabilidade, depressão, perda do apetite, contusões frequentes, entre outros. Uma forma de flagelação, como se nota com facilidade. (http://sportsmedicine.about.com/cs/overtraining/a/aa062499a.htm).

O exercício físico necessário para triunfar nos esportes - deixando de lado, aqui, formas de estimulação química - pode se transformar em martírio. Não é raro que o atleta com tal síndrome busque ainda mais treinamento e mais sofrimento. O corpo se torna, ele mesmo, um obstáculo para obter o prêmio do Espírito - a vitória. Não existe sinal, contudo, desta associação mais direta no texto de Segneri. Parece seguir literalmente o paradigma poético dos Antigos.



O atlético "Cristo atado à Coluna", de Manuel Chili, o Caspicara (1723-1796).

sábado, 11 de junho de 2011

Dicend: asculta, eu te iubescu

Como ressalta o comentário bíblico de Matthew Henry, todo o trecho da primeira epístola aos Coríntios examinado pela nota de Segneri é marcado por imagens retiradas das competições esportivas da Antiguidade. A sensibilidade dos habitantes de Corinto é natural, pois os Jogos Ístmicos eram celebrados em sua vizinhança desde o ano 582 a.C, sendo suprimidos como ritual pagão apenas no século IV, sob Teodósio I. No tempo do Apóstolo, constituía, portanto, uma tradição multisecular.

No versículo I Coríntios, 9.27, chega mesmo a dizer que o pregador da palavra de Deus deve submeter seu corpo à disciplina para que não seja "reprovado". O termo grego empregado, adokimos, é de natureza esportiva: descreve o descarte, pelo juiz, de quem não tem condições de concorrer. Segneri, por sua vez, sugere que Cristo mesmo seja o grande corredor, o grande atleta.

O caráter sacro do vencedor da competição esportiva era também uma imagem corrente e muito de sua solenidade pode ser atribuída à poesia de Píndaro (522 a. C. - 443 a.C). Suas odes são o melhor registro da nobre visão da Antiguidade sobre o atleta vencedor, capaz de levar a fama eterna para si e para os seus:

(50) ... Zeus concede o bem e o mal, Zeus o senhor de tudo.
Mas honras tais como estas bem recebem a alegria do triunfo,
coberta com o delicioso mel da canção.
(55) Deve o homem disputar e contender nos jogos
se aprendeu com a estirpe de Cleônicos.
O longo treino de seus homens não se esconde na cega escuridão
nem o pensamento de seu custo estremece sua devoção à esperança.
Celebro Píteas também entre os lutadores que domam os membros
(60) com hábeis mãos guiando retamente os golpes de Filácidas
cuja mente é sem igual.
Toma uma guirlanda para ele e um fio da lã mais fina
envia-os com esta alada canção.

Ode Ístmica 5. Para Filácidas de Egina, vencedor do pancrácio em 478 a.C.




Não falta a Segneri, contudo, uma referência local ao heroísmo de uma competição esportiva, transparente no uso do termo palio. Como se sabe, trata-se de uma tradição medieval de fundo religioso, uma corrida de cavalos sem sela, realizada em Asti ao menos desde o ano 1275 e em várias outras cidades italianas. Palio é o nome de uma peça de roupa, usada em Roma como manto, que marcava o local do fim da corrida e era também o prêmio do vencedor.



Imagem do Palio de Asti. Século XVIII.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Sic currite, ut comprehendatis

Considera, che questa vita è quasi una via, nella quale si corre al palio, ch'è la gloria del Paradiso. Todos os homens são chamados a tal corrida, mas quantos seguem parados! Não diz o Apóstolo "aqueles que estão no estádio", mas "aqueles que correm". Inumeráveis são os que evitam um passo para longe do ócio, da crapulice, das comédias, dos amores e de outro entretenimentos. Se na corrida apenas um vence, o que será dos que nem correm? Só o perseverante vence. Tu mal começas uma devoção e logo a deixas. Sinal ruim de que pertences ao número dos infelizes. Como o Apóstolo disse, não basta correr, mas correr para vencer. No serviço de Deus há que fatigar-se. Seguir na corrida vencida por Patriarcas, Profetas, Mártires e, sobretudo, Cristo. E così vedi che bisogna anche correre a questo fine di havere il palio, e conseguentemente non restar mai di correre fin'a tanto, che non arrivi.

(marzo xviii, Nescitis quod hii qui in stadio...  I Coríntios. 9.24 )

terça-feira, 31 de maio de 2011

Quando i soldati de Oloferne

"Havendo eu (diz em um de seus preciosos fólios) indagado esta manhã ao Senhor após a Santa Missa que se dignasse a sugerirme qual afeto depois da Comunhão fosse mais conveniente e mais próprio exercitar para dar-lhe gosto (já que bem sei que não se deve entreter o homem em discursos com o intelecto, mas em operar com a vontade, nem se deve, enquanto temos Deus dentro de nós estultamente procurá-lo fora de nós) me pareceu que sobretudo deve ser o sentimento do estupor. A reverência é pouco, a humildade é pouco, o amor é pouco. Uma maravilha, a maior de todas, que é assim demandada, memoriam fecit mirabilium suorum; não parece que melhor requeira do que maravilha. Deus a mim? Deus comigo? Deus em mim? Que posso eu fazer pensando nisso se não restar atônito, morto, restar absorto em um infinito estupor?"

Raguagglio, capítulo LII, págs 202 e 203.

segunda-feira, 30 de maio de 2011

Pe domnul Elephant, cu inasul invêrtit

Dentre os pesadelos criados pela literatura, poucos são tão sombrios quanto o tormento que recai sobre os Struldbrug, habitantes da ilha de Luggnagg. Tal como os descreve Gulliver, o viajante, os Struldbrug são imortais, mas continuam cumprindo o destino da carne, que é envelhecer. Nessa condição cada vez mais decrépita, tornam-se vulneráveis a eventos de terrível sordidez. Cair em um poço pode se transformar em uma tortura infinita.

O problema, como nota Segneri, é a carne. Enquanto isso, as utopias médicas contemporâneas vendem aos tolos uma juventude infinita, incompatível com o conceito de carne. A retórica das paixões libertadoras condenam todos a um amargo fim, que raramente se vê nos cinemas. Uma espécie de morte civil, como a que acometia as criaturas de Swift. Qualquer hipótese futurista sobre a juventudade eterna apenas viola a estrutura da condição humana. A mortificação, nesse sentido, é uma resposta mais consistente.

O poder da amarga imortalidade da velhice ganhou uma versão inesperada e arguta em um filme recente, The Hunger (1983). No roteiro de James Costigan, Ivan Davis, Whitley Strieber e Micahel Thomas, os vampiros hedonistas - uma metáfora dos adultos-crianças modernos que não querem envelhecer e se alimentam de mitologias crepusculares - terminam alcançados pela moléstia da carne, a que mais temem: a decrepitude. Imortais, não conseguem, contudo, morrer. Vegetam em um sótão.



David Bowie como John Blaylock, em The Hunger

terça-feira, 24 de maio de 2011

qui sunt Christi, carnem sua

Considera qual è il contrasegno di essere caro a Cristo. Não é operar milagres, predicar, profetizar, ser um doutor do Mundo, mas ser mortificado. E é preciso querê-lo. A mortificação é tomar a Cruz, de forma constante, dolorosa. Não é bom médico aquele que não vai à raiz do mal: a carne. É preciso domar a carne com penitência ou queres apenas acariciá-la? E a mortificação exterior de pouco vale: do que serve curar a febre e não o que causa a febre? Quais são as paixões que mais reinam em ti? Procura conhecê-las para poder mortificá-las. Podem até estar vivas, ao menos vivam na Cruz. Quanto aos vícios, grandes ou pequenos, não basta pô-los na Cruz: há que modificá-los. A questo ancora col favore Divino tu porrai giungere.

(marzo xvii, qui sunt Christi, carnem sua aos Gálatas. 5. 24)

sábado, 30 de abril de 2011

Troncato però ormai tutto quel più

Concluída a narrativa de seu passamento, começa o registro de seus comentários pessoais, colhidos em conversas com seus discípulos e colegas. Sobre a reforma moral, dizia Segneri, é melhor começar de súbito e de forma integral. Melhoras graduais exigem lungo tempo, gran fatica e minor fruto. Trata-se de pedir a graça de Deus logo. Em outra carta, a um dos nossos, dizia Segneri: há que fazer a vontade de Deus e servi-lo. Il resto è mera bugia. Ele mesmo, por sinal, declarava ter dúvidas sobre a natureza de seu amor: se era pelo que Deus é ou pelo que Deus dá. Gostava de repetir que mal podia esperar para chegar ao Céu.

Não faltava a Segneri uma cordial bonomia. Tendo pedido a um padre que fechasse uma porta que deixara aberta, ouviu, em resposta, "se afrontarás tantas tempestades amanhã em suas missões, porque temes este vento hoje?". Responde Segneri: "hoje cuido eu desse assunto, amanhã, Deus cuidará". Ria dos perigos, como no desembarque em Gênova e na travessia dos rios. No curso de uma viagem entre Roma e Florença, acompanhado de Lorenzo Gualtieri, enviado do Grão Duque, sua carruagem cai por um ribanceira. Gualtieri começa a gritar por Jesus; Segneri apenas sorri e, de fato, nada aconteceu e ninguém perdeu a vida, homens ou cavalos. Contestado com a afirmação de que os outros temiam pois eram pecadores, retrucou: "Ah, filho, sou bem pior que tu, sou a escuma dos perversos, mas estávamos em viagem pela causa de Deus, não havia o que temer. Amemos a Deus sempre mais e nos voltemos a ele, porque no outro mundo, ó grande coisas! Ó grandes coisas!.

Nas missões, apesar de todas as tempestades e do mau tempo, sempre começava suas prédicas em campo aberto e chamava a todos à devoção. Não hesitava em denunciar concubinas de poderosos e escândalos, apesar de todos os riscos pessoais. Após condenar os Quietistas, passou a receber cartas com ofensas e ameaças e muitos o aconselharam a abandonar as missões, as estradas desertas e as pequenas cidades: esta é a causa de Deus, dizia, cabe a Deus defendê-la.

Raguagglio, XLV a XLIX

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Ce fusese crescut sub pat la pension

A expressão de Segneri é direta e forte: o que não vale para a salvação da alma não vale nada. O secularismo moderno abandonou as formas tradicionais de crença, mas a busca da salvação avança de forma inédita. A indústria da auto-ajuda nos Estados Unidos, segundo McGee (Self-Help, Inc.: Makeover Culture in American Life, Oxford, 2005), ultrapassava, no início dos anos 2000, a cifra de 3 bilhões de dólares no seu faturamento anual. As projeções fixavam, para o final da década, um valor global de 11 bilhões de dólares apenas nos Estados Unidos. É curioso notar que este valor era bem próximo das vendas de anti-depressivos no país em 2008, resultado de cerca de 230 milhões de receitas, sendo de longe o medicamento mais consumido.

A salvação da alma, nos tempos modernos, vem com outro custo. O sucesso das técnicas e da literatura de auto-ajuda é o resultado e, em seguida, também a causa de uma singular diluição intelectual das terapias psicológicas herdadas do século XIX, sejam elas positivistas ou espiritualistas. Ao contrário das complexas teorias pseudocientíficas sobre a alma e das mitologias da psicologia moderna, a auto-ajuda contemporânea precisa ser agradável, fácil de entender e não pode exigir grandes sacrifícios privados.

A moralidade religiosa é intolerável para os homens contemporâneos, mas também a ciência não desperta o interesse imaginado. Na verdade, nem os autores das obras de auto-ajuda importam muito - basta a convicção de que, com boa vontade, a própria alma será salva.

Estima-se ainda que 80% dos consumidores de técnicas e literaturas de auto-ajuda são reincidentes. Voltam a adquirir o mesmo material, tendo funcionado ou não, para os objetivos fixados.




Pieter Bruegel. Cegos guiando cegos (1568).

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Stulte, hac nocte animam tuam repetum a te

Considera, chi non haverebbe somamente invidiato quel famoso ricco Evangelico, il quale havea sortita ricolta sí copiosa, che ne pure sapea dove collocarla; possedeva già rendite in annos plurimos; haveva qualunque comodità mai volesse, di darsi all'ozio, di banchettare, di bere, di scapricciarsi? Quem não o diria beato? E, no entato, era infelicíssimo, pois não reconhecia os bens de Deus. Não dava a parte aos pobres, não O agredecia. Ó quantos ricos semelhos não existem no Mundo! Deus o chamou estulto, pois só pensava na vida presente, e, naquela mesma noite, os Anjos já estavam próximos. Considera a qualidade do castigo. Não o ameaçou com o Inferno, mas com sua falta do que mostrar aos Anjos que vinham. Mais temem, os mundanos, o mal parecer do que o Inferno. Dão mais contas do que têm, antes do que são. O que não vale para a salvação da alma, não vale nada. A chi toccheranno i tuoi Campi? di cuius erunt? Forse a chi si rida di te, mentre starai bestemiando la sua follia. Dunque una cosa sola è quella, che importa, pensare all'Anima.

(xvi marzo... Stulte, hac nocte animam ... Lucas 12.20)

terça-feira, 29 de março de 2011

come preziose Relique

Convocado a Roma em dezembro de 1692, Segneri vive na cidade seus últimos meses de vida. Logo que chega, é feito Teólogo da Sacra Penitência e Examinador de Bispos, mas pede como favor pessoal ser dispensado dessa última tarefa, assim como de fazer as prédicas da Quaresma diante do Papa. Aos setenta anos, não sente o mesmo vigor. A saúde declina rapidamente a partir de julho de 1694, por conta de uma moléstia hepática, denunciada pela cor amarela que assume sua pele. Os cardeais preparam-se para o pior, mas Segneri não perde a bonomia. Visitado pelo cardeal Albani, futuro Papa Clemente XI, pergunta se não há algo que possa fazer por ele "no outro mundo".

Após alguns dias de agonia, falece no dia 9 de dezembro de 1694. Imediatamente, é ordenada a confecção de seu retrato, logo enviado a Príncipes e dignatários religiosos. O Grão Duque da Toscana mantinha sua cópia em seu gabinete de trabalho. Foi sepultado no cemitério dos noviços de sua ordem.

Raguagglio (capítulos XL a XLIV)

sexta-feira, 25 de março de 2011

O! câte lupte, câte suspine

A idéia de que nosso corpo pertence ao Criador, que por ele pagou com seu sangue, e que deve ser destinado a um objetivo espiritual superior soa claramente hostil para uma mentalidade moderna. Na verdade, mesmo o cuidado com o corpo para conquistar uma vida saudável perdeu sua centralidade nos dias que vão. A obesidade tornou-se uma endemia mesmo em países de renda média e há tempos as cirurgias plásticas, de caráter cosmético, passaram a representar uma fração importante da atividade médica no Brasil e no mundo. Poderia mesmo parecer que o corpo humano foi transformado em mero objeto, em instrumento a ser usado com base em critérios utilitários. Nem isso, contudo, é completamente correto.

A realização de transplantes - um fato distante do horizonte mental dos tempos de Segneri - poderia comprovar uma face positiva dessa realidade. Sendo estritamente nosso, poderíamos abrir mão de nosso corpo quando este não mais fosse útil - na morte. Curiosamente, essa consideração utilitária não pesa sobre a doação de órgãos. Qualquer estatística sobre o tema, mesmo em sociedades tecnologicamente capazes de aproveitar a generosidade de um doador, mostra um difícil cenário.

Basta conferir os números oferecidos por http://www.donatelifeny.org/about-donation/data/. Nos Estados Unidos, mais de 110 mil pessoas esperavam por doações de órgãos como corações, rins, pâncreas, pulmões, fígados e intestinos.  Por ano, de todas as causas, falecem nos Estados Unidos cerca de 2,5 milhões de pessoas. Mais de 120 mil pessoas morrem de acidentes. Ainda assim, em 2009, houve apenas 8 mil doadores falecidos naquele país.

Na verdade, o número de doadores mostra-se estável na primeira década do século XXI:




O panorama não é diferente em outros países. Na Inglaterra, com população menor, houve 2 mil doadores falecidos em 2009 para um número de mortes em torno de 500 mil. Campanhas permanentes de saúde pública pedem o registro como doador de órgãos, mas o deficit é permanente.

É como se, subitamente, no momento da morte, a idéia pragmática do uso do corpo fosse substítuída por um preconceito religioso, fundamentado na idéia da santidade do corpo. Na verdade, quase todas as religiões oficiais, como alerta o sítio acima citado, apoiam a doação de órgãos. O estabelecimento de alguma forma de doação compulsória, por sua vez, é impensável em uma sociedade democrática.

Este cenário causaria espanto a Paolo Segneri: não queres dar seu corpo nem a Cristo, nem a seu semelhante? Preferes que vermes o comam? O que será de tua alma, perguntaria o jesuíta.

domingo, 20 de março de 2011

An nescitis, quonian non estis vestri?

Considera quanto à vero, che non sei tuo, mentre il Signore ti hà comperato a prezzi si alto, qual è quello del sua sacratissimo Sangue. E queres dispor de ti como te apraz! O Senhor tinha alguma necessidade de comprar-te? Nenhuma. Considera a prodigalidade que usou o Senhor em comprar-te! Se visses alguém que podendo comprar uma jóia por mil escudos e desse ao vendedor dez mil não o julgarias enlouquecido pela alegria de possuir tal jóia? E no entanto quis dar a sua vida pela tua em meio a tanta carnificina. Deves, portanto, assim dedicar teu corpo a Deus; por isso deves cuidar de tua alma. Che pensi a salvar l'anima si, ma per quel cagione? Perch'elle non à tua, ma del tuo Signore. Questo è il motivo più nobile per cui possi fuggir l'Inferno: per custodire a Giesù tutto ciò ch'è suo.

(xv marzo... An nescitis, quonian non... I Cor.6.19.20)

segunda-feira, 7 de março de 2011

Din cupa desfatarei amaraciunea naste

Não deve passar sem registro, ainda sobre a soberba, uma caminho propriamente moderno para a compreensão de seu caráter nocivo e para sua correção: a percepção da solidariedade íntima da vida social. Schimmel (Os Sete Pecados Capitais, 1997) narra o caso de uma de suas clientes, uma profissional bem sucedida e arrogante que, subitamente, como consequência de um acidente de carro, viu-se no chão de uma estrada, perdendo sangue e a consciência. No curso de poucos minutos, estava implorando por ajuda de paramédicos e policiais que, em circunstâncias normais, não mereceriam sua atenção pessoal: "ela, que acreditava em sua superioridade deu-se conta de funções sociais mais importantes que a dela, cumpridas por homens menos educados, culturalmente sofisticados ou bem sucedidos economicamente. Eles salvam vidas, aliviam a dor e o sofrimento. Ela nunca fez tais coisas. Esta lição foi um poderoso corretivo de sua soberba." (pág 54).

A conclusão de Schimmel merece ser citada: "Estas reflexões permitiram que minha cliente mantivesse o compromisso com a humildade apesar da perda de sua fé. Dados os custos pessoais e sociais da soberba e a recompensa da humildade, muitas pessoas que não vêem a si mesmas como religiosas ou piedosas podem concordar que a arrogância é um vício pernicioso a ser evitado e a humildade uma virtude digna de ser cultivada. Mais humildes somos, mais humanamente nos relacionamos com os outros, como indivíduos, grupos ou nações".


segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

De se trag din nem máre

A complexa dialética da soberba não impede Segneri de salientar os traços decisivos deste pecado mortal: a falta de limites. Na reflexão moral clássica ou cristã, esse é o traço decisivo: ultrapassar o marco divino imposto aos mortais. Em obra recente, O Fascínio do Mal - Os Vícios Capitais (2008), o jesuíta Giovanni Cucci quase repete a lição de São Gregório, com a ajuda da psicologia moderna: sob todo o Pecado há uma desmesura fundamental, um caráter obsessivo, diretamente ligado à soberba. Esta última seria, assim, na verdade, a fonte de todos os demais pecados.

A complexidade da soberba também não impede Segneri de notar seu aspecto espiritualíssimo, desvinculado de objetos externos específicos e capaz de se ocultar mesmo entre as boas obras. Como perceber a vaidade oculta naquele que faz o bem? Por isso, Segneri recomenda uma ativa terapia que não cuide apenas das manifestações externas da soberba (in verbo), mas de sua sensação íntima (in sensu). A terapia imposta por Deus seria ainda mais severa: o soberbo recairia no pecado mais revelador de sua estupidez. Esta é sua humilhação: imaginando-se superior entre os homens, já seria objeto de ridículo ou piedade.

A surpreendente punição de uma soberba secreta fascina a religião ortodoxa, sempre suspeita de glórias temporais. Em seu romance Os Irmãos Karamazov, Dostoiévski apresenta um sombrio episódio do funeral do starets Zosima. Líder espiritual de uma espécie de convento, considerado homem santo em sua vida, adorado pelos fiéis. Zosima falece e todos esperam alguma manifestação de Deus em seus funerais. Subitamente, seu cadáver, exposto à visitação, começa a feder de forma repelente e escandalosa. Seria uma punição de Deus a um soberbo oculto? Um aviso aos que celebram a carne de um homem? Dostoiévski não resolve o enigma, apenas o apresenta.



Alfred Eisenstaedt (1898-1995). Monge de um monastério da Tessália

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Superbiam numquam in tuo sensu

Considera come nella superbia, ch'è um disordinato appetito di maggioranza, hebbe veramente principio ogni perdizione: perchè doppia è stata la perdizione del Mondo. Uma veio do Anjo; outra veio de Adão: ambas derivam da soberba. Quanto é de temer! Cresce nas plantas nobres e nas vis. Considera no que consiste a transgressão dos limites - do Anjo e de Adão. Um queria comandar as estrelas; outro conhecer do bem e do mal. Vê quanto importa saber se conter dentro dos limites fixados pelo Senhor. Considera quão foi horrível a punição, a queda dos anjos. Se um Monarca fizesse executar em praça pública uma centena de nobres personagens, Marqueses, Marechais, Duques a ele caríssimos que dirias tu? Não dirias insuportável o delito por eles cometido? E não foi assim o que se passou com os anjos? Considera o cúmulo de males que recaiu sobre os filhos de Adão. Que torrente pode ter causado tal coisa? Foi a soberba.

Considera, contudo, a diferença entre a soberba in sensu et in verbo. Mantém distância de ambas e mais da primeira porque dela procede a segunda. Considera que sendo a soberba pecado espiritualíssimo tanto é mais fácil se ocultar como áspide maliciosa entre as boas obras. Queres tu saber quanto Deus a odeia? Nessun Medico savio, affine di curare un infermo periculoso permette ch'egli mai cada in un altro male se non à molto minore di quel que pate. E pure Iddio per curar un superbo, lascia che più volte precipiti in quei peccati che mostrano chiaramente la lor brutezza, e così lo umilia.

(marzo xiv, Superbiam numquam in tuo sensu, aut in tuo verbo, Tobias 4. 14)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

In unde de lumina cu zefiri a'nota

Apontar os rios como uma imagem da mudança nas coisas humanas é um gesto clássico, mas Segneri, em sua nota, lhe agrega um significado de ordem moral. A transitoriedade não é apenas um problema para a teoria do conhecimento, mas para a consideração dos assuntos humanos. É a mesma observação do poeta japonês Kamo no Chomei (1153-1216) em seu ensaio "Sobre minha pequena cabana". Assim ele começa:

Ainda que a corrente do rio nunca se interrompa, as águas que passam, momento a momento, nunca são as mesmas. Onde a corrente forma remansos, bolhas vêm à superfície, se desfazem e desaparecem, dando lugar a outas. Nenhuma dura muito. Nesse mundo, as pessoas e suas casas são assim, sempre em mudança [1]

Nem é claro para mim, enquanto as pessoas nascem e morrem, de onde elas vêm e para onde vão. Nem porque sendo tão efêmeras nesse mundo, têm tal cuidado em fazer suas casas agradáveis aos olhos. O dono e a casa competem em sua transitoriedade: ambos hão de perecer como a glória da manhã em seu orvalho. Por vezes, o orvalho evapora primeiro, enquanto permanecem as flores, somente para fenecer sob o sol da manhã. Por vezes, fenecem antes mesmo do orvalho e ninguém espera que este dure até a noite. [3].

Tradução da tradução de Robert Lawson, Washburn University:

http://www.washburn.edu/reference/bridge24/Hojoki.html


Lua de outono sobre o rio Tama. Ando Hiroshige (1797-1858).

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Ce inimile léga lantul suffletesc

O movimento socialista foi o mais importante fator, nos últimos cento e cinquenta anos, na desaparição da interpretação moral do infortúnio. A proclamação iluminista de que a felicidade terrena é a única felicidade levou à conclusão socialista de que todo infortúnio tem razões materiais, resulta da apropriação feudal ou capitalista e deve fundamentar a revolta do indivíduo. Qualquer resignação com o infortúnio não passa de resignação diante da injustiça de classe. Um poeta socialista, Louis Aragon, chegou mesmo a afirmar que, sob o socialismo, não haveria atropelamentos.

Não é preciso notar a triste ironia embutida na realidade da promessa socialista, mas cento e cinquenta anos de conflito com o capitalismo forçou este último, por razões eleitorais, a confessar a mesma proclamação iluminista. Nenhuma autoridade política ocupará a tribuna para recomendar aos eleitores que aprendam moralmente com tragédias e infortúnios. Mesmo que o Estado não tenha a menor condição de remediá-los ou evitá-los. Apenas em breves momentos, diante das agruras da guerra e da privação, uma liderança política será forçada a reconhecer que só tem sangue, suor e lágrimas em sua plataforma de governo. Nos últimos anos, a mera sugestão de alguma temperança sexual para enfrentar uma mortal epidemia de DST era reprovada como demonstração de reacionarismo religioso.

A hipocrisia última da modernidade, em matéria de infortúnio, mal se compara com a outra face da moeda proposta por Segneri. Sem condições de oferecer a provisão adequada dos bens desse mundo a todos, a modernidade se conforma em proclamar todos os dias a excelência de meros consolos midiáticos. Em um tempo que se recusa à consideração moral do sofrimento, resta apenas o consumo crescente de tranquilizantes, anti-depressivos e remédios para úlcera.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Id quod in prasentis est momentaneum

Considera, che non dice Tribulatio, ma Id quod in prasenti est tribulationis, perche se tu della Tribulazione riguardi ciò ch'è passato, già non dà pena; e così ne meno accade porlo in discorso. Se é presente, será momentâneo tanto mais se comparado à eternidade, leve com respeito à culpa e à graça, que é dada para tolerá-la. Considera o bem que este mal te fará. Tais são as quatro prerrogativas do Paraíso: superabundante, inalterável, ser eterna e ser ponderosa. Considera que a tribulação não lhe dará a glória, mas que opera desde agora, como causa moral e como causa de mérito. Assim como Deus pôs Adão no Paraíso, a ti põe em tribulação, pobreza, ignominia, enfermidade. Deixa que ela trabalhe como o agricultor que fere a terra. Considera quanto é justo contemplar os bens celestes. Ris do vilão que contempla o rio que passa, mas o que são os bens de terra? Son altro forse che simili ad un tal fiume. Lasciali andare.

(marzo xiii, Id quod in prasentis... 2. Coríntios, 4. 17).

sábado, 8 de janeiro de 2011

Liber beati et laudabili viri Gregorii

Coube ao beneditino Francis Gasquet, em 1904, a publicação do manuscrito com a mais antiga Vida de São Gregório, encontrada na abadia de São Gall, na Suíça. A Vita Beatissimi Papae Gregorii Magni Antiquissima, cujo título original é Liber beati et laudabili viri Gregorii pape urbis Rome de vita atque virtutibus, foi escrita originalmente em Streoneshalch, cuja denominação, em 713, era Whitby. O texto foi terminado quase cem anos, portanto, após a morte de Gregório, em Roma.

O manuscrito teve excelente circulação, sendo amplamente utilizado pelo Venerável Beda em sua história da Inglaterra. Seu autor provável é o bispo Oftfor, cujas viagens de estudo inclui uma estada em Roma, antes de ocupar o bispado Hwiccas, sob o rei Osric.



Primeira página do manuscrito Liber beati

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O nuove epopee, poema stralucita

Dois registros adicionais sobre São Gregório, o Grande.

A maledicência mencionada por Segneri atingiu o Papa Gregório I após sua morte. Em mais uma ocasião difícil em Roma, quando recursos eram necessários, constatou-se que o tesouro apostólico estava sem fundos, por causa da generosidade de Gregório em atender os pobres durante seu pontificado. O episódio é mencionado na Vida de Gregório que consta da Legenda Dourada, compilada pelo bispo de Gênova, Jacobus da Voragine, por volta de 1260.

Na sua Homilia 26, sobre a festa de São Tomás, ele apresenta sua célebre definição sobre as relações entre Fé e Razão: "Fides non habet meritum ubi humana ratio praebet experimentum". Quão pouco mérito tem a Fé que se sustenta nas provas da Razão...



Triunfo de São Gregório. Igreja de São Gregório, Roma.