quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Vigilate omni tempore

Considera, che il Signore vuole con queste parole darti ad intendere, che l'opera della tua eterna salute non ha da dipendere nè della tutta da te, nè da lui. Há que fazer a tua parte, há que pedir e recomendar-te a Deus. E não basta começar, é preciso continuar. Alguns crêem que basta orar e pedir no tempo da tentação; não é assim. Não vês como procedem os cães fiéis? Assistem à sua grei mesmo quando estão distantes os lobos, distantes os ladrões. Dessa forma colherás os frutos no dia do Juízo, quando os justos estarão firmes, com o testemunho da boa consciência. E há que suplicar ao Senhor sempre: Schivar nell'ultimo dì la sorte cattiva, incontrar na buona.

(febbrajo xxv, Lucas 21.36, Vigilate omni tempore)

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Car cils douzours tan dousa es

Os problemas da menção a São Matias Apóstolo não se limitam ao procedimento de sua escolha ou aos materiais biográicos extramente limitados, mesmo para uma figura do primeiro século. A literatura patrística registra, sem qualquer ambiguidade, um evangelho (apócrifo) de Matias, originário do Alexandria e com data atribuída aos anos 100-150 CE. Especialistas acreditam mesmo ter encontrado um papiro com o seu texto.

Oficialmente, nada restou do texto, mencionado por Orígenes, Eusébio, São Ambrósio, São Jerônimo e o Venerável Beda. Há referências oficias em uma lista de decretos do Papa Gelásio do século VI e uma relação bizantina de textos canônicos do século VII, o Catálogo dos Sessenta Livros Canônicos. O Evangelho de Matias, de sabor claramente gnóstico, pode ser, na verdade, o mesmo texto das Tradições de Matias, que também merece referências específicas na literatura patrística.


Essa é melhor fonte na internet: http://www.earlychristianwritings.com/traditionsmatthias.html





Imagem: Zacharias Dolendo [Leiden, 1561 - Leiden, c. 1604]

En segre cort et en servir

Não é rara a menção aos que, estando elevados diante do Senhor, ainda assim caíram. Orígenes foi citado duas vezes desde a primeira página do Maná; a idolatria de Salomão surge agora, ao lado do fariseu Saulo, caído de tão alto. A menção a Judas, derrubado da posição de apóstolo é ainda mais chocante, induzida pelo santo do dia, São Matias Apóstolo.

Talvez sem querer, chama-se atenção para um dos episódios mais interessantes do Evangelho: a substituição de Judas, demandada por Pedro logo após a ascensão de Jesus. Trata-se do primeiro assunto decidido pela comunhão dos crentes, de acordo com a narrativa em Atos (1, 15-26).

Para começar, houve dois candidatos: José, chamado Barsabás, o Justo, e Matias. Pedro invoca a participação do Senhor, mas a mensagem não é direta:

"E lançando-lhes sortes, caiu a sorte (kleros) sobre Matias. E por voto comum foi contado com os onze apóstolos" (Atos 1, 26)

A expressão voto comum existe apenas em português. Em grego, houve um sorteio. Na verdade, lembram os comentadores que kleros, quer dizer, tecnicamente, dados.


In eos quidam qui ceciderunt severitatem

Considera la Bontà, e la Severità del Signore. Uma severidade nunca é maior que sua bondade, pois jamais pune conforme a culpa. A consideração da bondade e da severidade é a escada para fugir do Inimigo. Quando ele tenta a desconfiança, pensa em quão bondoso é; quando ele tenta a soberba, pensa em quão terrível é. Esteja firme nesse escada e considera quantos dela caíram, mesmo de sublimes alturas. Judas, que caiu do apostolado, Saulo, Salomão, Orígenes e tantos que estavam no Senhor. Não caem tantos ao primeiro pecado? Considera na bondade a ti destinada, favorecido por Deus com ajudas eficazes, especiais, superabundantes. Considera a ruína que te espera se o Senhor te subtrai tal benignidade. Però, c'hai da fare, se non che sempre raccomandarti ardentemente al Signore, come chi sta tra la speranza, e 'l timore, e sempre ricordati, ch'egli è benigno, ma ancora ch'egli è severo?

(febbrajo xxiv, Romanos 11, 22, Vide bonitatem)

domingo, 27 de dezembro de 2009

Mais lai on tota li gens vai

A comparação do combate do Cristão com as lutas olímpicas é contemporânea da evangelização paulina. O texto clássico está em I Coríntios 9, 24-27. O Apóstolo afirma que corre e combate; corre, contudo, em direção à certa salvação, luta contra seu corpo. Segneri está certo em separar muito claramente os dois tipos de agon.

Nos dias que vão, a metáfora está reduzida a uma mera expressão confessional: um atleta que também é cristão. A descrição da organização norte-americana é quase brutal:

Athletes In Christ is a non-profit 501c (3) corporation dedicated to seeking the kingdom first and providing quality content about professional and amateur athletes who are willing to stand-up and make an eternal difference. We are a Christ-centered Bible believing organization designed to share the gospel of Jesus Christ through the vehicle of sports.

http://www.athletesinchrist.org/aboutaic.htm.


sábado, 26 de dezembro de 2009

ubi erat Ioannes baptizans primun

Considera ciò, che da te ricerca il Signore per coronarti, ch'è che combatti contro tuoi scorreti appetiti. Este é o combate que lhe dará a santidade e não orações, revelações e todas as devoções exteriores. Tais são apenas meios ou fruto da santidade. É preciso combater legitimamente, em verdade. Não largar nunca da lança. O Senhor não pede que triunfes, mas que combatas, continuamente, sem dar trégua ao inimigo. As batalhas espirituais são diferentes das batalhas materiais. Nestas, tu te cansas com a luta; naquelas, tu ficas mais forte quando combates. Três são as tuas armas: a desconfiança de ti mesmo, para que nunca dês o combate por cumprido; a confiança em Deus, ele só pode te dar a vitória; e a oração, o meio para pedir a ajuda de Deus. Nei giuocchi Olimpici, chi metteva il premio a i Lottatori, non dava ancora le forze. Sedeva a Giudice della Lotta bensì, ma non si moveva a socorrere, a sostenere, ò a levare alcuno di terra. Stava qual semplice spettatore ozioso. Iddio non così. Ti promete la gloria e ti dá la grazia; ma vuol que tu glie la chiegga continuamente.

(febbrajo xxiii, 2. ad Timóteo 2, 5, Qui certat in agone)

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

apenre pos, non sui tan veillz

Nada mais natural do que uma conexão entre condenação da fama mundana conduzida por Segneri e o culto contemporâneo da celebridade. Sua análise é tão serena e precisa que aplica-se com facilidade ao noticiário do dia, desdobrando-se de forma criativa na indagação do que seria a fama de cada um perante o Senhor. Ele - que tudo sabe - não precisaria dos caminhos incertos do rumor para formar seu julgamento sobre cada um. No entanto, a figura retórica mantém sua força.

Se existe uma lição, contudo, que sempre sobrevive ao teste da realidade é aquela registrando as virtudes públicas decorrentes de vícios privados. Em vários aspectos, o que pode parecer aberrante do ponto de vista individual - a avareza, a genialidade, o gosto pela fofoca, etc - pode produzir vantagens sociais substantativas - o investimento, o desenvolvimento tecnológico, a imprensa. Não é diferente com a busca da fama terrena e vejo com fascinação o exame do tema pelo Tyler Cowen.

Em Qual o Preço da Fama? Cowen chega a dezenas de conclusões fabulosas, do plano moral à filosofia política, que não podem ser resumidas em uma nota breve. Quase todas, por sinal, decorrentes dos mesmos mecanismos descritos por Segneri. Ele sugere, por exemplo, que a busca da fama tem um impacto financeiro negativo sobre as celebridades, que, na média, extraem rendimentos decrescentes de seu investimento em se tornar e manter famoso. Não nos iludamos com meia dúzia de bilionários famosos, a realidade das profissões que dependem da fama é cruel. De outro lado, na média, os fãs normais extraem sentido e satisfação existencial com muito menos investimento pessoal na indústria da fama. A escala social que torna viável a cultura pop é sustentada, na verdade, sobre dois tipos de vítima: o aficcionado obsessivo e o famoso fracassado. Cowen não tem dúvida de que boa parte da economia americana está relacionada à indústria da "fama", mas concordaria com as advertências de Segneri sobre o danos morais pessoais da mesma.

Cowen atinge alturas filosóficas quando analisa o impacto da fama moderna sobre a política e sobre o poder. O Estado Moderno é muito mais poderoso do que qualquer versão similar do passado e os riscos associados à liderança política são, portanto, muito maiores. Os holocaustos modernos comprovam o poder da seriedade e do messianismo. As eleições, contudo, terminam forçando o político moderno a se tornar uma celebridade e, com isso, ele vai perdendo algo de sua seriedade. Ao depender da fama, vai se tornando mais ridículo. Há 30 anos, um chefe de Estado com uniforme militar causava alguma impressão; hoje é visto como um personagem de opereta. Segneri, no fundo, tem toda a razão.


Videte et cavete ab omni avaritia

Considera, dove al fin si riduce tutto quel bene, che può venirti dalla lode degli huomini. Possono dirti beato, ma non già farti. Beatum dicunt. És, na verdade, como estás diante da face do Senhor. Como vais perdido por conta das loas à vaidade! Quem te louva, não faz bem a ti e mal gravíssimo te faz. Roubam o conhecimento real de ti mesmo, fazem crer naquilo que não és. Cobrem os teus defeitos, dão desculpas, dizem que é virtude o que é vício. E tu tanto amas o que dizem? Eles te tiram da melhor estrada que há - a Humildade. É a estrada que Cristo trilhou na Terra, que calcaram tantos santos, tantas almas caras a Deus. Depois que tanta estima fazes de ti mesmo, vem o desprezo ao próximo e a sobera. Ó que ruína indizível. Considera com que forte resolução deverás renunciar a qualquer loa que te possa vir dos homens. Não trabalhar para estimulá-las, não aceitá-las, não lhes dar albergue na mente, desprezá-las, desvia-te dos raciocínios que te provocam como de provocadores importunos e finalmente avvezzati a voler solo nelle tue cose l'approvazione da quel Signore, che non solo può dirti beato, ma ancor può farti.

(febbrajo xxii, Popule meus, qui te beatum dicunt, Isaías 3. 12)

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

così restituito alla fortunata sua madre

O espetáculo de fé das Missões do padre Segneri não se limitava às missas e penitências. Havia um empenho direto na correção dos costumes, a começar das rixas e vinganças endêmicas no meio rural italiano. Identificado o ofendido pela morte de um parente e, portanto, responsável pelo reinício do ciclo de mortes, Segneri iniciava seu assédio que podia incluir, caso nenhum convencimento fizesse efeito, a própria flagelação, realizada em favor do renitente. Tão efetivo era o procedimento que as pessoas que buscavam preservar seu sentimento de vingança fugiam ou se escondiam, principalmente quando mulheres. Segneri buscava todos os envolvidos onde estivesse e promovia o seu teatro dramático do arrependimento.

Outro capítulo inevitável da reforma dos costumes era o combate ao jogo de cartas (cujo fornecimento no Antigo Regime era sujeito a um regime fiscal específico) e às canções profanas. Nos eventos das Missões era rotineiro pedir pelos baralhos e queimá-los na frente de todos. Não faltava sequer um elemento de incentivo: os baralhos eram trocadas por medalhas com a efígie do Papa. Quanto às canções profanas, Segneri e seus auxiliares buscavam apenas substituí-las, distribuindo hinários e poemas sacros.

Tal ofensiva cristã despertava, naturalmente, a reação das forças infernais, que promoviam todo tipo de acidente, aproveitando-se das multidões reunidas: quedas de pedras, de pontes, enchentes, barulhos eram os estratagemas do Inimigo para perturbar as Missões. As tragédias, contudo, eram sempre evitadas por fatos maravilhosos e há mesmo uma nota de rodapé assegurando que tais fatos foram testemunhados por um sacerdote. Talvez não se acreditasse mais apenas na força da palavra escrita. Como o caso do bebê de seis ou sete meses que caiu em uma torrente, depois que os remeiros desistiram de controlar o barco e buscaram a salvação nadando. Restituído à sua mãe, para festa universal.

Raguagglio, capítulos XXI a XXXI

sábado, 12 de dezembro de 2009

Sener, hom vos dis som voller

A inclusão do termo Deus em qualquer raciocínio leva aos paradoxos das infinitudes, que ainda hoje afligem tantas teorias físicas. Basta uma divisão por zero para arruinar toda um conjunto de equações; basta incluir a vontade de Deus em um argumento para tornar difícil uma conclusão moral. Deus, como lembra Segneri, é tão superior a nós em poder e em essência que sua posição de Juiz termina controversa. Condenar-nos seria prova do sumo jus, suma injúria - o exercício de um direito em excesso. Inocentar-nos, diante das culpas mais aberrantes, seria inviabilizar moralmente o mérito. O mistério do livre arbítrio, na verdade, nem se aplica nesse ponto; o problema é mais trivial: por que o infinito Deus haveria de julgar o pecador por comer um bolo a mais, por um adultério a mais?

Segneri fez aqui uma sugestão perigosa. Deus pode tudo, inclusive condenar o mais puro de nós e salvar o mais renitente pecador, diante de uma mínima penitência. Deus estaria interessado em nossos motivos e não em nossos atos. Nossa vida sexual não teria qualquer interesse moral para Deus a não ser por revelar nossos cálculos e nossas intenções, as mais íntimas. Ele estaria nos colocando, na verdade, diante do mesmo dilema que abateu Satanás: curve-se, mesmo diante do absurdo. Se, de fato, nos concedeu o livre arbítrio, Deus joga dados, ao contrário do que pensava um célebre cientista.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

quasi spiritualibus, sed quasi carnalibus

Considera maraviglia! Deus, Iddio, un Signori di tanta maestà, offeso, oltreggiato, da chi? da un'huomo, cioà, da un verme vilissiomo della terra, da un suo suddito, da un suo schiavo. E lhe dá, sem obrigação, por mero afeto, por mero amor: estímulo, tempo, ajuda. Quem poderia crer em tal coisa? Admirarias a bondade de Deus e deplorarias a retribuição bestial. Ah! se Deus punisse de imediato! Ah! se exigisse grandes sacrifícios para conceder o Paraíso! Vê como abusas da paciência divina. Sai che ella non è altro, che spazio di penitenza, locus poenitentiae. Tu la riconosci per tale? Compungiti, confonditi, umiliati, e guarda bene, perchè questo sarà it torto sommo, che farai a Dio, se abateris in superbiam.

(febbrajo xxi, Jó 24.23, Dedit ei Deus locum penitentiae...)

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A la fe Deu! pauc sap de plag

A conexão entre a obra religiosa e filosófica de Hindmarsh e as sugestões de Segneri sobre a cidade de cada um é certamente arbitrária, mas, ainda assim, sugestiva. Toda configuração é uma escolha e o conceito topológico chave, nesses casos, é a mera compactividade. É possível construir uma espaço compacto entre Segneri e Hindmarsh? Ou, por outra, tomando como suposta a compactividade, qual a topologia a ser descrita?

Nunca estive convencido de que as visões acadêmicas sobre a disciplina filosófica encerram o debate sobre a topologia do espírito. A ciência popperiana pode se dar ao luxo de uma descrição mais precisa de seus limites; o que chamamos de filosofia vai além disso e poderá encobrir fenômenos - como rituais ou a formação de discípulos - antes desconsiderados. Ellenberger, por exemplo, notou há tempos que o traço distintivo da psicanálise não é sua teoria da mente humana, partilhada com várias outras abordagens, mas sua insistência no controle estrito de seus praticantes. Em uma corrente política, esse controle faz um sentido, mas em uma disciplina espiritual, suas implicações são outras.

Essa abordagem não é original. Benjamin extraiu lições importantes do estudo de autores marginais do barroco alemão e mesmo Voltaire chamou atenção para objetos não convencionais, como o fanatismo. A escolha de Segneri como centro de uma análise filosófica do domínio espiritual oferece perspectivas topologicamente novas sobre o passado e sobre o futuro das coisas que são escritas.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Ben fes erras d'enamorat



A busca pela cidade celestial segue estranhos caminhos.Robert Hindmarsh (1759-1835), tecnicamente um discípulo do místico sueco Emanuel Swedenborg (1688-1772), foi o fundador do primeiro grupo de seguidores de suas doutrinas. Originalmente um pregador metodista, converteu-se ao ler Céu e Inferno e em 1783 publicou um anúncio de jornal promovendo um encontro de interessados em Swedenborg. O sucesso foi de tal ordem que em janeiro de 1788, seu primeiro sermão foi lido em uma capela alugada em Eastcheap, Londres.

A partir de 1790, Hindmarsh começou a publicar seu The New Magazine of Knowledge concerning Heaven and Hell, and the Universal World of Nature, misturando as doutrinas de Swedenborg com ocultismo e ciências naturais. Condenava, porém, a astrologia, a mágica e as artes divinatórias em geral. Reencarnação também era negada. Chefe da Society for Promoting the Heavenly Doctrines of the New Jerusalem, Hindmarsh adotou várias formulas do Metodismo para tornar suas doutrinas mais aceitáveis e, de fato, passou a contra com a colaboração da London Theosophical Society, outra organização swedenborgiana.

A comunidade religiosa prosperou ao longo do século XIX e missionários foram enviados aos Estados Unidos. A literatura básica sobre a nova Jerusalém é composta por Godwin, Joscelyn. The Theosophical Enlightenment. Albany: State University of New York Press, 1995; Hindmarsh, Robert. Rise and Progress of the New Jerusalem Church in England, America, and Other Parts…. Edited by Edward Madeley. London: Hodson & Son, 1861; e Sigstedt, Cyriel Odhner. The Swedenborg Epic: The Life and Work of Emanuel Swedenborg. London: The Swedenborg Society, 1981.

Imagem: Robert Hindmarsh. Rise and Progress of the New Jerusalem Church (1861).

sábado, 21 de novembro de 2009

Non habemus hic manenten civitatem

Considera, che questa misera terra non è altrimenti la Città sua permanente. La tua Città è il Paradiso. Como diferentes são tuas cidades: a presente e a futura. Considera como deves te comportar em uma terra onde és forasteiro: não te apegues. Vê como coisa que não te toca. Não és apenas forasteiro, ès peregrino. Que fazes quando passas em peregrinação? Não te ocupas de levar coisas, de andar carregado, levas apenas o necessário. Ma oimè: quanto procedi diversamente! Appena pensi mai al Paradiso: cattivo segno. Non dovrá dunque quella essere la tua Patria.

(febbrajo xx, Hebreus 13. 14)

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

en sa cambra per repousar

Prop. XXXVI. O amor intelectual de Deus é o amor com que Deus ama a si mesmo, não enquanto é infinito, mas enquanto ele pode ser explicado por meio da essência da mente humana considerada sob a espécie da eternidade; em outras palavras, o amor intelectual de Deus é parte do infinito amor com que ama a si mesmo.

Prova.- (1) Este amor deve ser relacionado às atividades da mente (V:xxxii.Coroll. and III:iii.); é ele mesmo uma atividade pela qual a mente vê a si mesma acompanhada pela idéia de Deus como causa (V:xxxii.&Coroll.); que é (I:xxv.Coroll. and II:xi.Coroll.) uma atividade por onde Deus, enquanto pode ser explicado pela mente humana, vê a si mesmo acompanhado pela idéia de si mesmo; portanto esse amor é parte do infinito amor com que Deus ama a si mesmo. Q.E.D.

Corolário - Daí segue-se que Deus, na medida em que ama a si mesmo, ama o homem e consequentemente o amor de Deus pelos homens e o amor intelectual de Deus são idênticos.

Bento de Spinoza, Ética, Livro 5.

Qui prodest homini, si mundun

Considera la differenza notabile, la qual passa tra 'l nostro amore e 'l Divino. Noi ci moviamo ad amare uno perch'egli è buono: Iddio si muove ad amarlo, non perchè é, mas perchè vuol fare buono. Deus é como um escultor que vê passar um tronco em uma corrente: não vê a madeira informe, mas a obra de arte que pode fazer. Assim como está em Jeremias 31. 3 (Há muito que o Senhor me apareceu dizendo: Pois que com Amor eterno te amei, também com amorável benignidade te atrai). É assim o Amor de Deus: não tem princípio na beleza, na doutrina, na riqueza, mas na caridade. É um Amor perpétuo e antigo como Deus. Desde que Ele é Deus, está enamorado de ti. Eternamente pensa em ti. Se tanto falas bem de um Príncipe - o que não deverias falar de Deus, que te amou desde antes do Mundo. Vê como sempre te ajudou a fazer o Bem, não respeitando a rebeldia de tua vontade, mas testando-a. Considera a infinita misericórdia: podia te abandonar e não o fez. Deves um dia ceder e trazer outros à salvação; pois ele não quer salvar apenas a ti, mas muitos. Perchè in qual forma ti poteva egli mostrare maggior affetto, che mentre ti ha salvato per renderti salvatore? Questa sí, ch'è stata un'eccelsa misericordia.

(febbrajo xix, Jeremias 31. 4)

sábado, 14 de novembro de 2009

No.us penses pas ses lums anes

Aproximando-se do fim do mês de fevereiro, as anotações de Segneri começam a perder em variedade. A citação implícita a uma estampa e a referência à Física do estagirita não escondem o recurso menos intenso à vida dos Santos e o uso da repetição de sinômicos como instrumento retórico. Segneri parece obcecado com a necessidade de defender a eternidade da punição infernal como a retribuição aos que se deixam seduzir pelos encantos desse mundo. Essa aridez ressalta uma indagação natural sobre a efetividade de seu texto e sobre a identidade de seu leitor.

Não seria certamente o camponês italiano, frequentador das missas espetaculares que oficiava no curso de suas missões. Não seria o público ilustrado urbano. Não há também qualquer esperança de posteridade em suas linhas. Talvez escrevesse para seus colegas predicadores, mas o Maná não funciona, ao menos até aqui, como um repositório de argumentos, nem possui a erudição necessária para impressionar jesuítas. Suas anotações, nem de longe, possuem o fogo de um sermão de Antônio Vieira.

O Maná talvez seja escrito para aqueles fiéis, funcionalmente alfabetizados, incluídos na cultura e no hábito do livro, e, assim, não queira convencer ninguém: apenas reforçar uma Fé preexistente. Considera, escreve ele sempre ao começar sua anotação. Suas repetições, sua falta de originalidade, sua ortodoxia sem maior sofisticação estariam plenamente justificadas: não quer convencer a quem não quer ser convencido.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

confortamini in Domino et in potentia virtutis eius.

Considera, quanto è vero, che mai non devi portar punto d'invidia alla prosperità de' Cattivi. Vivem alegres, mas por poucos anos. Quanta amargura continuamente engolem aqueles mesmos, que buscam satisfazer todos os seus desejos! Veja como terão de descontá-los. Pelo desafogo que deram à Soberba serão confinados no mais profundo báratro do Inferno, a estar eternamente escravos de Satanás; à Avareza, a permanecer terrivelmente pobres; à Luxúria, devorados por escorpiões e serpentes; à Ira, serão insultados para todo o sempre, à Gula, estar em perpétua fome, à Inveja, contemplar os que humilharam ou vitimaram; e à Preguiça, estarão sepultos em uma imobilidade terrível, exilados de Deus. Considera como essa transição será rápida, do trono à escravidão. A causa é o peso do Pecado, que logo os põe na ruína do Inferno antes de sentirem que estão a arruinar-se. Todas as coisas seguem ao Centro, sem necessidade de impulso extrínseco e assim vão as culpas prontamente a encontrar as penas. Tu che vuoi fare? Sarà dunque vero, che non ci sappi finire ancor di risolvere a porsi a salvo.

(febbrajo, xviii. Jó 21. 13 Ducunt in bonis dies suos )

sábado, 7 de novembro de 2009

si con fais austors a perdriz



Le Chesne sert premier de gland, puys d’ombre,
De Jupiter l’arbre ha des biens sans nombre.
Avant les bledz trouvéz, Les anciens vivoient
de gland de chesne, & puys se reposoient des-
soubz en l’ombrage, & pource consacroient
le Chesne au souverain Dieu Jupiter, qui leur
donnoit d’enhault nourriture, & repos. Ce
que signifie la beneficence de Dieu estre telle,
que apres le fruict d’icelle receu, encore en sert
l’ombre, & memoire, comme faict la loy de
Moyse, & les Prophetes, à l’Evangile.

Imagem: Andrea Alciato, Emblémes (1549).

et cum compleretur dies Pentecostes

Considera, che chi dice tutto non esclude niente. Tutto ciò che tu fai, non solo di pio, ma ancora d'indifferente, tutto da te dev'essere indirizzato all'onor di Cristo. Deves enriquecer em mérito e assim transformar a lama em ouro. Ó se soubesses quanta infelicidade è a tua enquanto trabalhas para teu prazer. Não és de ti, mas todo de Deus. Tua intenção é como a coluna de fumaça que sobe olorosa ao céu, mas que qualquer vento pode desviar. Seja um rio grato, mas rio: reporta ao Mar o que do Mar te foi dado. Ma non so come i più degli huomini pajono tanti animali, che se ne stiano di sotto una quercia a pascerci di quelle ghiande, che di là cascano in abbondanza si grande, e ne pur alziano gli occhi a rimirare una volta chi lor le dona, tanto è lunghi, che la ringrazino.

(febbrajo xvii, Colossenses 3. 17)

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

con si santi ezercizii si giungeva l'ultimo giorno

O ponto alto das procissões rituais conduzidas por Paolo era a missa. De forma dramática, o sacerdote surgia portando uma coroa de espinhos e praticava a auto-flagelação no púlpito, com grande abundância de sangue. A reação registrada por seu biógrafo é ao mesmo tempo convencional e inevitável: a imensa lista de arrependidos como as prostitutas, os assassinos de estrada e os judeus.

Segneri também organizava cultos noturnos e missas campais. As procissões de flagelantes tinham no pregador uma figura de destaque, andando com cadeias nos pés, etc. Ao longo das cerimônias, ele queimava cartas de jogo, condenava brutalmente os pecadores e repetia a flagelação. Quando contestado por seus amigos e pares, dizia: a eternidade se aproxima. Sua ação provocava mesmo a ira do inferno: um espírito expulso de uma mulher não o deixou dormir, certa vez, batendo portas por toda a noite (pág 70).

O resultado de todo esse zelo era uma verdadeira epidemia de confissões, com filas e filas de gente buscando o sacramento. Tarefa, aliás, que cabia a seus irmãos jesuítas. Os problemas de surdez de Segneri não lhe permitia receber a confissão, a não ser em ambientes preparados, onde o fiel poderia falar em voz mais alta.

Ragguaglio, Caps 13 a 20.

quar donna es cuberta res

Dídimo, o Cego (313-398), professor de teologia em Alexandria, foi condenado por defender a salvação universal, o Evangelho segundo os Hebreus e a transmigração das almas no Terceiro Concílio de Constantinopla (680). Tertuliano (160-220), primeiro escritor cristão latino segue fora da hoste dos santos por seu extremo rigorismo moral e montanismo. Orígenes (185-254) também sofreu a condenação da Igreja pela crença na salvação universal.

Um tese que, como se pode notar, causa grandes constrangimento a Segneri.



Imagem: ícone de São Dídimo, o cego, considerado como tal por igrejas ortodoxas.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Habemus autem thesaurus istum in vasis

Considera, quanto gran fatica ci vuole ad alzar di terra um alto Edifizio spirituale, quanti atti di annegazione vi si richieggono, quanti di ubiddienza, quanti di umiliazione, quanto di mortificazione ancora austeríssima. E como tudo pode arruinar-se em um átimo. Basta um pecado mortal, mesmo em pensamento. Medita na queda de Dídimo, de Orígenes, di Ozio, de Tertuliano de outros que tanto bem fizeram. Tu que não hás praticado sequer uma parte desse bem, não deves temer por ti? Deus sempre pode negar a graça, tuas obras não O obrigam. Mesmo teu mérito é dom de Deus. Sempre hás de ter em mente a necessidade da ajuda de Deus e, portanto, pede sempre. Se tu resti di dimandare com grand’ardore, è cattivo segno; è segno, che non hai da salvarti.

(febbrajo xvi, Eccl 27.4)

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

que ja non gart dreit ni mesura

Menos impressionante que uma descrição moralmente negativa dos fatos triviais da vida, beber, comer, vaidades da profissão e das habilidades ou beleza pessoal ou mesmo a atribuição de um caráter pecaminoso grave ao que pode parecer apenas trivialidades da existência, é a conversão a este sistema de valores. São Francisco Borja certamente viu muitos cadáveres antes de proceder ao enterro de Isabel de Portugal: com eles nada aprendeu. Em determinado momento, em determinado dia, a podridão da carne lhe pareceu intolerável.

Sigo com a impressão de que o grande problema humano continua sendo a conversão, entendida no sentido amplo da palavra. Aquela estranha solenidade exaltada visível nos textos do apóstolo Paulo e de Vladimir Ilitch Lênin.



José Moreno Carbonero (1860-1942). Francisco de Borja y Aragón diante do caixão de Isabel de Portugal.

tot un cor vol aver per se

"Let me disclose the gifts reserved for age
To set a crown upon your lifetime's effort.
First, the cold friction of expiring sense
Without enchantment, offering no promise
But bitter tastelessness of shadow fruit
As body and soul begin to fall asunder.
Second, the conscious impotence of rage
At human folly, and the laceration
Of laughter at what ceases to amuse.
And last, the rending pain of re-enactment
Of all that you have done, and been; the shame
Of motives late revealed, and the awareness
Of things ill done and done to others' harm
Which once you took for exercise of virtue.
Then fools' approval stings, and honour stains.
From wrong to wrong the exasperated spirit
Proceeds, unless restored by that refining fire
Where you must move in measure, like a dancer.'
The day was breaking. In the disfigured street
He left me, with a kind of valediction,
And faded on the blowing of the horn."

T.S. Elliot. Little Giding. Parte II.



Alonso Cano (1601-1667). São Francisco Borja. O santo carrega um crânio com o diadema imperial, referência à missão recebida de levar os restos de Isabel de Portugal para o túmulo em Granada. O caixão teve de ser aberto, antes que o cadáver fosse posto na cripta. Profundamente chocado, o bisneto de Alexandre VI jurou nunca mais servir um soberado terreno.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Nescio quid dicis

Considera, che in questo Mondo non v'è godimento puro, se non è quello, che Dio communica al cuore de' suoi divoti. O gozo dos ímpios é impuro e torpe, ó quanto há de dor ali! Vê os bens idolatrados - os prazeres, as riquezas, as honras - e verás que gozo é este: cheio de amargor, inquietude, enfermidade, litígio, tédio, emboscadas, agitações, raivas. No riso se mistura a dor pois se não lhe acompanha o pecado, lhe segue de perto. O pecado é engolido como pão, se mastiga por vontade. Considero como esse gozo é mesclado com a dor e na morte ocupado inteiramente pelo luto, causado pela consideração do passado, do presente e do futuro. Luto pela recordação do Mal feito e o Bem deixado de fazer! Luto por abandonar aquilo que é por força de abandonar! Deixar o próprio corpo aos vermes. Luto pelo temor do julgamento divino, por uma eternidade de castigo ou prêmio, pelo rigor do Juiz, pela sentença irrevogável, pela pouca segurança do réu.

Para os justos, tudo ao inverso. A tranquilidade da boa consciência na hora da Morte, a memória de ter servido a Deus (ao menos tentado). No presente, haver destacado o coração das criaturas e de si mesmo. In riguardo al futuro, gli conforterà la Misericordia del Giudice, a cui tante volte si sono raccomandati, mentre era loro Avvocato. A te sta ora il vedere qual sia quel riso, a cui tu vogli appigliarti.

(febbrajo xv, Provérbios 14. 13. Risus dolore miscebitur...)



Imagem: Diabo alimenta os pecadores. Século XVI.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Mal'aventura Deus li don

A reconciliação universal ou apocatastasis, em grego, é uma doutrina atribuída a Clemente de Alexandria (m. 215) e Orígenes (m. 254) , apoiada em Coríntios I, 15-28, e certamente alimentada pela insuportável idéia de um mal eterno. São Basílio (330-379) fixou a doutrina contrária e a apocatastasis foi declarada anátema no quinto concílio de Constantinopla (553).

Nos últimos anos, várias autoridades cristãs, católicas, protestantes e ortodoxas, vêm se pronunciando a favor da doutrina da reconciliação universal.

http://www.romancatholicism.org/cormac-apokatastasis.htm

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

quais vergoinos parec vermeilz

"Especulación más curiosa es la presentada por el teólogo evangélico Rothe, en 1869. Su argumento —ennoblecido también por la secreta misericordia de negar el castigo infinito de los condenados— observa que eternizar el castigo es eternizar el Mal. Dios, afirma, no puede querer esa eternidad para Su universo. Insiste en el escándalo de suponer que el hombre pecador y el diablo burlen para siempre las benévolas intenciones de Dios. (La teología sabe que la creación del mundo es obra de amor. El término predestinación, para ella, se refiere a la predestinación a la gloria; la reprobación es meramente el reverso, es una no elección traducible en pena infernal, pero que no constituye un acto especial de la bondad divina.) Aboga, en fin, por una vida decreciente, menguante, para los reprobos. Los antevé, merodeando por las orillas de la Creación, por los huecos del infinito espacio, manteniéndose con sobras de vida. Concluye así: Como los demonios están alejados in-condicionalmente de Dios y le son incondicionalmente enemigos, su actividad es contra el reino de Dios, y los organiza en reino diabólico, que debe naturalmente elegir un jefe. La cabeza de ese gobierno demoníaco —el Diablo— debe ser imaginada como cambiante. Los individuos que asumen el trono de ese reino sucumben a la fantasmidad de su ser, pero se renuevan entre la descendencia diabólica. (Dogmatik, 1,248.)

(...) Yo creo que en el impensable destino nuestro, en que rigen infamias como el dolor camal, toda estrafalaria cosa es posible, hasta la perpetuidad de un Infierno, pero también que es una irreligiosidad creer en él."


Jorge Luís Borges. La duración del infierno (em Discusión, 1932).


domingo, 18 de outubro de 2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

qui domicilium habebat in monumentis

Considera, con quanta regione dovresti haver sempre in bocca queste parole di sopra addotte (Olhará para os homens e dirá: pequei e perverti o direito, o que de nada me aproveitou, Jó 33.27). Tanto te lamentas das provações enviadas por Deus e não pagas nem uma pequeníssima parte do que deves, por comissão e omissão. Deves dizer as palavras de Jó com crença real. E afinal, que são as adversidades de Mundo comparadas às do Inferno? Considera que mesmo no Inferno, todos os danados podem dizer essas palavras com verdade, ainda que não digam: porque a verdade não pode encontrar lugar para sobrepujar o furor. Or argumenta tu, s'è citra condignum quel fuoco dipinto, che Dio di quà fa provarti, mentre ancora sarebbe citra condignum quel fuoco vero, che ti ha di là risparmiato.

(febrrajo xiv, Jó 33.27)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

ja non dira pois tanta reva

A modernidade, que tanta troça fez do sacrifício do corpo pelas doutrinas religiosas, que tanto riu das disciplinas impostas à carne em nome de ideais ultramundanos, não consegue fugir de sua própria armadilha. Nem vamos falar da obsessão com dietas, da ingestão ritual de vitaminas e medicamentos contra a absorção de lipídios e açúcares, as infinitas revistas nas bancas de jornal com prescrições de exercícios físicos - resultado inevitável da idéia de que o corpo não paga um preço pelo descaso da mente. Essas ironias, nem de longe, são as mais interessantes.

O fascinante é o seu inverso, anotado, por exemplo, nesse artigo do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas:

"Apesar de já haver estudos científicos e pesquisadores dos mais avançados laboratórios do Mundo trabalhando em torno do doping genético, a juventude dos dias atuais continua exposta ao perigo real dos anabolizantes. O consumo desenfreado dessas drogas tornou-se epidêmico dentro da sociedade, sem distinção de faixas etárias ou classe econômica. É uma epidemia estimulada na supervalorização do físico pela indústria e pela comunicação de massa, que normalmente encontram nas crianças e adolescentes - ávidos por novidades e necessitados de auto-afirmação - os seus alvos mais frágeis.

Uma pesquisa realizada pela Universidade de Massachussets com 975 crianças norte-americanas entre 9 e 13 anos traz resultados alarmantes: 32% dos garotos conheciam um colega da mesma idade que estava utilizando esteróides anabolizantes. E ainda: 2,7% dos meninos e 2,6% das meninas admitiram consumir tais substâncias. Isso significa, na melhor das hipóteses, que numa sala de aula com 50 alunos da 4ª série do ensino fundamental pelo menos um já assume que está se drogando."

Se tal esforço não é a realização da sugestão de Segneri, fazer do corpo o servo da alma, distorcido até seu paralelo lógico... O curioso é que a reação inevitável de familiares e autoridades é copiar a retórica moralizante do século XVII:

"Essa situação atual pode ser o reflexo da nossa sociedade elitista dita moderna e da nossa civilização, em que se nota uma inversão de valores que enfatiza o estar em maior evidência. O uso dessas drogas continua sendo praticado e muitas vezes estimulado pelo próprio sistema", explica um dos maiores especialistas sobre o assunto no País, Azenildo Moura Santos, autor do livro O Mundo Anabólico. Azenildo tentou fazer uma pesquisa semelhante dentro das escolas de Pernambuco, mas encontrou forte resistência dos donos de colégios."

A um religioso do século XVII, padecendo de disciplinas penosas, que respondesse ser a vida nesse mundo uma breve passagem, indigna de maior consideração, que deveria ser usada apenas para garantir maior felicidade no outro mundo, essa é a resposta do homem do século XXI:

"Assim como aconteceu com o fumo há quase 200 anos, a droga é associada à modernidade, beleza e à saúde. Apesar de começarem a ser denunciados casos de câncer de fígado, hepatite tóxica, entre outras sérias doenças relacionadas ao uso de anabolizantes, ainda existe uma forte resistência dos consumidores dessas substâncias que garantem que os efeitos nocivos variam de pessoa para pessoa. "A verdade é que quem usa essas drogas hoje ainda corre riscos desconhecidos", afirma Azenildo Moura. Já o médico Osmar Santos é mais incisivo: "Um garoto que começa a usar anabolizantes aos 11 anos não chega aos 18 inteiro".


In qua potestate haec facis?

Considera, che questo servo à tuo corpo. Mas há que ter regras para seu governo. Nutri-lo, sim, mas sem delicadezas, porque, como servo, vai fatigar-se, viajar, trabalhar. Quantas vezes te alimentastes sem outra intenção que nutri-lo? É preciso recordar-lhe que é servo. Se padece frio, se padece fome, paciência. Não é devido à sua vil condição? Considera o dano se o conduzes com muita delicadeza. Se tornará contumaz, recalcitrante, desobediente. Que confusão não será se assim tratares teu fâmulo? Este acariciamento é tanto mais prejudicial na juventude. Na velhice, não podes esperar tanto mal de teu amor pelo corpo. Assim acostuma-o a um padrão, como ao servo que há muito tens dentro de casa. Questa diversità però sempre passa tra 'l corpo, e tra altri servi: che verso gli altri non milita quell'amore si sregolato, che milita verso il corpo, l'amor proprio: e però in dubbio, la virtù vuole che con gli altri servi sii più benigno, che rigoroso; col corpo, che tu sii rigoroso, più che benigno.

(febbrajo xiii, Provérbios 29, 21)

sábado, 3 de outubro de 2009

Dieus, e que dis? que vol? que.m quer?

A Igreja Católica não tem conseguido evitar um injusto dilema imposto pela política moderna. Quando defendeu a liberdade e a propriedade, diante da ameaça da Revolução Socialista, foi tachada de amiga dos ricos e dos opressores. Quando passou a defender os pobres, a Teologia da Libertação foi acusada de mero disfarço do marxismo. Um olhar imparcial notaria que a escala temporal da Igreja é superior ao do capitalismo e que o socialismo sequer completou um século de existência fora dos livros: ela não tem porque fixar-se em assuntos menores.

A invectiva de Segneri, seguindo as palavras de Jesus, sublinha, na verdade, a histórica urgência de moderar a mensagem política do cristianismo. Desde seu início, se não é uma religião contra o Estado, é uma religião que impõe limites bem claros ao exercício do poder político e questiona frontalmente o status moral de qualquer autoridade. O Império Romano foi forçado a controlar sua força dissolvente das relações sociais deste mundo, visível na confrontação proposta pelos mártires e pela força do movimento monástico.

Nos dias que vão, há um esforço de convencer milhões de cidadãos de que a política é um domínio existencial relevante. Nas grandes democracias, as lideranças decaem para o status de celebridades do circo e os eleitores pouco se interessam em votar, na ausência de sanções legais. No mundo do capitalismo asiático, os indivíduos seguem satisfeitos com uma liderança forte. O Estado democráticos é frágil como construção de apelo geral, qualquer mitologia autoritária bem ordenada (nazismo, socialismo revolucionário, fascismo, confucionismo de Estado, etc) representa uma ameaça. O cristianismo, uma ameaça ainda maior.

Praticamente no mesmo tempo em que Segneri chamava atenção para a lição de Cristo - a autoridade humana é abominação diante de Deus -, homens de fé na Inglaterra tentavam pô-la em prática. Respeitar a Realeza e a Propriedade é apenas uma forma de idolatria - uma abominação. Não existe autoridade humana diante de Deus, nenhuma posse desse Mundo será justificada no outro.

O ensinamento de Jesus - "meu Reino não é desse Mundo" - frequentemente é descrito como politicamente conformista. Não é.


Gerrard Winstanley. Uma Declaração do Pobre e Oprimido povo da Inglaterra dirigia a todos os que se denominam Senhores de Terras. (1649).




Idem. O Padrão dos Verdadeiros Niveladores. (1649)

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

abominatio est ante Deum

Considera, quanto sia pazzo tanto di Mõdo, mentre va così smoderamente perduto dietro gli onori. Que coisa é, diante de Deus, o que pelos homens é chamado de alteza de posto, de grandeza, de glória. É abominação. Esculpe na alma essa sentença saída da boca de Cristo. Contarias vantagem das coisas injustas que fizestes? Considera o quanto é realmente prezada a tua alteza no Céu. Não vês que mesmo entre os homens, os mais espirituais, os mais retos, os mais razoáveis são da opinião de Cristo? Não estimas ser antes prezado de Deus? Tu sabes que o Senhor desdenha os outros pecados, abomina a arrogância, abomina a ambição, abomina a altivez e contra estas volta todas as sua baterias. Vê que veio à Terra dar exemplo de humilhação. Apenas nascido mostrou haver medo de um homem, qual era Herodes e ainda que pudesse de tantos modos subtrair-se de seu desdém, salvar-se de sua espada, elegeu o mais ignominioso, fugiu de noite. De trinta e três anos que viveu sobre a terra, não menos de trinta em uma ignóbil bodega, servindo apenas de auxiliar de um operário e não duvidou de viver nesse caro desprezo de si mesmo, e poderia em todo esse tempo operar muito bem, pregrinando, pregando, ensinando, como fez no último curso de sua vida. Escolhe a Morte de todas a mais oprobriosa, antes que morrer assentado. Ma perchè al fin tutto ciò, se non per mostrarti, che s'egli ha in odio le comodità, i passatempi, i piaceri dietro cui vanno così perduti i mortali, abbomina il fasto. Quod hominibus altum est, abominatio est ante Deum.

(febbrajo xii, Lucas 16, 15)

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Adura ben, aquel ti ve / adura mal, fai atertal

Mesmo uma breve passagem, a linha de um livro pode mudar a descrição corrente da realidade. O coronel Dave Grossman, hoje na reserva do exército dos Estados Unidos, escreveu em On Combat que nosso bom sono depende da vigília de homens violentos. De fato, nesse momento, a noite se aproxima e na portaria do prédio alguém passará a noite em vigília, eventualmente exposto à violência. A algumas centenas de metros daqui, policiais armados preparam-se para a madrugada. O sono é momento de perigo, quando a Morte pode chegar. Os santos não dormem muito, nota Paolo Segneri. Sansão e Holofernes se perderam no sono.


Os santos devem estar atentos, vendo, vigiando, orando para afastar as múltiplas formas da ilusão. Preparando-se para o momento decisivo do soldado e do santo: a Morte. Como saber se, no segredo dos sonhos ou do êxtase, está o descaminho do Príncipe da Luz? Os santos estão, na verdade, sitiados, à espera de um combate onde vão morrer.

Illic erit fletus, et stridor dentium

Considera, che in questi tre punti à compreso tuto cio, che tu devi fare per viver sempre apparechiato alla Morte. Vedere, vigilare, & orare. Ver para que não se aproxime o pecado mortal, a cegueira lutuosa, muito mais perigosa que a do corpo. Vigiar para que não durmas como Sansão, Holofernes e o mal te aconteça. A vida é breve: faze como os Santos, que não cediam ao sono. Ora e recomenda-te ao Senhor. Não percas o desejo de orar. Pensa muito na morte, pensa que é pronta, que é iminente. Não duvides. Considera que não sabes quanto chegará tua hora. Olha o pobre Peixe na rede enquanto ela está na água: não sabe nada, goza, salta, tripudia, como fazem os outros, a quem não virá mal algum. Entretanto, è già spedito. Não deves crer na idade fresca, na saúde, na cor, na aparência, no vigor. Tu chiunque sii, ò sano, ò grande, ò vile, ò ricco, ò mendico, ti ritorno a dire, nescis quando tempus sit: non eris, ma sit, perchè non v’è circonstanza in cui l’ultima ora non possa per te già essere presente.


(febbrajo, xi, Mateus 13.33)

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

carnis curam ne feceris

Considera il favore, che Dio ti há fatto in collocarti là dove è giorno, in die, non tra le tenebre ò della gentilità, ò del giudaismo, ò della eresia, ma in um paese Cattolico, e forse ancora in um Ordine Religioso, dove il giorno è piu chiaro. Como podes corresponder? Anda na honestidade, anda sempre no bem. Ao dia não convém as obras da noite, daqueles que não conhecem o Cristo. São de duas sortes: as obras da concuspicência e as obras da ira e da emulação. Examina se tu as pratica. Deves vestir a Jesus Cristo. Falar, proceder, fatigar-se como Ele, como se diz que em cena um veste a pessoa real que se quer imitar. Considera que nada mais prejudica essa imitação de Cristo que o afeto pela Carne. Sua vida foi toda espiritual, avessa à carne. Há que governar a carne, não segundo essa deseja, mas segundo o que a razão prescreve. Se tu soddisferai la carne perch’ella te lo domanda, non farai mai punto di bene. Mira prima s’è raginevole il soddisfarla. E cosi carnis curam ne feceris in desiderris, ma secundum rationem. (Romanos, 13.13).


(febbrajo x, Romanos 13.13).

terça-feira, 15 de setembro de 2009

lo sal espars per miei lo cap

A recomendação da violência contra a própria carne talvez o aspecto mais chocante, para uma mentalidade moderna, dos cultos religiosas. Um exame mais detido das idéias que presidem a sua prática, contudo, poderia não apenas ajustar o seu correto sentido, mas também apontar para sua real deformação, ontem e hoje.

Doutrinaria e institucionalmente falando (ver http://www.religious-vocation.com/redemptive_suffering.html), a Igreja estabelece limites bem claros para a prática canônica da auto-flagelação. Deve ser praticada no contexto de uma comunidade religiosa, sob a direção espiritual de um superior e conduzida em segredo.

Praticar a auto-flagelação de moto próprio, sem um sentido definido por uma comunidade religiosa e exibi-la como espetáculo não é sinal de religiosidade ortodoxa. Pode ser sinal de qualquer coisa: de exibicionismo a fórmulas de submissão a autoridades.

Separadas essas perspectivas, a auto-flagelação ganha a dimensão semântica de seu denominador original: disciplina. Uma forma de impor a própria vontade sobre as frágeis disposições do corpo, um meio de puni-lo quando se torna um obstáculo para o objetivo final - a salvação. Nada que um drogado moderno, em uma clínica de tratamento, forçado a fazer trabalhos artesanais sem sentido, não seja capaz de entender.

Quem lê, contudo, a biografia de Paolo Segneri sabe que não se furtava a usar seu corpo flagelado como espetáculo religioso no decorrer dos cultos que presidia.


(Imagem: Flagelantes. Séc XVII. Note-se o rosto coberto.)

domingo, 13 de setembro de 2009

et dispensatores mysteriorum Dei

Considera, quanto sia mai grande l'odio che Iddio porta al peccato. Considera as tragédias que ocorrem ao Mundo: todas para punir o pecado. Considera o Inferno, ainda em seu lugar depois de milhões de séculos, não deu qualquer satisfação a Deus. Considera o amor pelas puras criaturas do Universo, os Patriarcas, os Profetas, os Mártires, não compensa ainda o ódio ao Pecado. Pois por ele permitiu que o Cristo tudo sofresse. Considera quanto odeia a ti, se és um pecador. Melhor seria viver como Escorpião, Dragão, Serpente - eles não são odiados por Deus. Pois a todas as criaturas chamou Davi para louvar o Senhor. Laudate Dominus Dragones. Que pode valer ser a delícia do Mundo se Deus ódio te tem? Melhor seria o contrário: ser odiado por todos e amado por Deus. Considera o que é necessário para que Deus comece a amar-te: vem em ódio a ti mesmo, chora os males por ti cometidos, aborrece-os. É possível que saibas amar tanto a teus pecados? Como deverias maltratar tua carne, não pelos pecados, mas por ódio!! Como deverias admirar-te que os elementos não se voltem contra ti!! Se tu capisci ciò che dir voglia stare in peccato mortale, ti dovrebbe sempre parere di sentir gli Angeli, che gridano delle nuvole Preparamini contra Babylonem per circuitum, omnis qui tenditis arcum, omnes, omnes, non parcatis jaculis, quia Domino peccavit. [Jeremias 50.14].

(febbrajo ix, Sabedoria 14.9)

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Auria donc de mi eveja?

O Carnaval também mereceu o comentário condenador de São Roberto Bellarmino (1542-1621), célebre por seus avisos cautelares a Galileu Galilei sobre o movimento da Terra. Em sermão pronunciado em Louvain (Concio XX, de Dom. Quinquagesimae, publicado em 1615), comenta:

Povo maravilhoso, esses foliões. Não precisam de sono como os demais mortais. Dançar basta. Por toda a noite vão pela cidade, berrando e se divertindo e ainda que suas pobres cabeças estejam expostas à chuva e ao vento não parecem sofrer qualquer dano. Basta, porém, a sugestão de uma hora solitária de oração ou o pedido para cumprir uma obra de caridade após o poente e vocês verão o que acontece. A brava cabeça que suportava os rigores da meia noite tão corajosamente logo começa a doer e, no dia seguinte, o pobre sujeito não consegue acordar antes do meio dia...

Bellarmin nota que o Carnaval não está previsto no Breviário, mas não há data observada mais... religiosamente. A citação se encontra em James Broderick, S.J., The Life and Work of Blessed Robert Francis Cardinal Bellarmine 1542-1621. Londres, Burns Oates and Washburne, Publishers to the Holy See, 1928, págs 92-93.



Foto: loja de máscaras, Veneza.

lo fin joi ques Amors lur dona

Segneri bem conhece os perigos do Carnaval:

"Quais são estes dias delituosos senão aqueles que correm, chamados de Carnaval? São aqueles em que parece ser lícito pensar apenas em desafogar o gênio, a cigarrear, a crapular, a saltar de maneira louca, a vagar nos amores, a usar de audácias e renovar na Cristandade a baixeza dos tempos Gentios." (febbrajo vii).




"Companheiros" e "Máscaras de judeus". Francesco Bertelli. Carnaval Mascarado. Veneza, 1642.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Secundum gratiam Dei, quae data est mihi

Considera, quanto sia proprio di un'huomo savio il temere, perchè chi più sa, più conosce ancora i pericoli, che si sono nella via del Signore, dove mai nessuno è sicuro sino alla morte, cioà sino al termine della medessima via. Nota, porém, que não se diz (Ecclesiástico 18, 27) se teme a tudo, mas em tudo teme. Porque se hás confessado, algum temor permanecerá, mas não o sumo. Este hás de ter nas obras do presente, para fazê-las justas. E não deve ser o temor servil, dos Escravos, mas o temor casto dos Filhos. Este temor de Deus não deve te fazer escrupuloso, mas cauto, circunspecto, soberano de si. Não apenas atenda por medo do pecado, mas ab inertia. Tu te guardas do Pecado, mas não te guardas do Ócio, da Tibieza, do Tédio, da Preguiça, que te deixam menos propenso ao Bem. Questa è la pessima qualità nella nostra natura viziata. Quando non riceve una violenza notabile, che la freni, va qual Cavallo indomito al precipizio. E que dias delituosos são esses senão o Carnaval? Eles não foram feitos para renovar na Cristandade a infâmia dos Gentios, mas para aumentar teu cuidado e não perderes a devoção. Os dias delituosos são aqueles dos Principes que favorecem o vício, quando se semeia o Cisma, o Relaxamento da comunidade. São os dias em que podes cair na soberba e esquecer do Senhor. Nelle altre si va più sicuro col vento in poppa, ma in questa allor si va maggiormente a pericolare: e però allor più che mai in omnibus metue, raccomandandoti sempre a Dio, come si fa negli immineti naufragij.

(febbrajo viii, Ecclesiástico 18, 27)

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Vostre cor non tengas cubert


O ensaio do sete de fevereiro - associado a São Romualdo (956-1027), foi escrito com fervor. Nele, há jóias. A ira feita tempestade sobre o mar, para atingir as naves. A inveja como doença dos ossos. A poesia evidente na sentença final sobre os pecados causadores da morte de Jesus. Sob o pregador, transparece o estudante das letras clássicas, o escritor sofisticado da língua toscana, para condenar a atenção às coisas desse mundo.

Tal como São Romualdo, nascido em Ravenna, de nobre família, levado à vida monástica por testemunhar um crime em família. Reformador e criador de mosteiros; foi feito abade de Santo Apolinário em Classe por Otão III, mas os mosaicos dourados não o impressionaram. Continuou perseguindo o ermo, a solidão. Tacente lingua e predicante vita, como escreveu Pedro Damião.

(Imagem: Guercino, São Romualdo, 1641).

sábado, 29 de agosto de 2009

Drum lass ich ihn nur walten

Was Gott tut, das ist wohlgetan,
Es bleibt gerecht sein Wille;
Wie er fängt meine Sachen an,
Will ich ihm halten stille.
Er ist mein Gott,
Der in der Not
Mich wohl weiß zu erhalten;
Drum lass ich ihn nur walten.

O que Deus faz, está bem feito,
Permanece justa sua vontade;
Quando governa meus assuntos,
A Ele hei de guardar em silêncio.
Ele é meu Deus,
Que na Tristeza
Sabe bem como me guardar;
Portanto a Ele só deixo comandar.

(Primeiro coro, BWV 100, Was Gott tut, das ist wohlgetan III, poema de Samuel Rodigast, música de J.S. Bach)




(Imagem: Mosaico de Santo Apolinário in Classe, Ravena)

Si spiritu vivimus, spiritu et ambulemus.

Considera, che come il tuo corpo in tutte le sue operazione è mosso dell’anima, cosi la tua anima dev’essere ancora mossa in tutte le sua operazione dallo Spirito Santo; perchè come l’anima è vita del corpo, cosi lo Spirito Santo è vita dell’anima. Mas como é isso que outro Espírito te guiaria em suas operações. Sim, pois sem Deus teu espírito flutua sem direção, não se guia ao Paraíso, como adverte Gálatas 5, 25. Três são os vícios que te impedem de andar segundo o Espírito: Vanglória, Ira, Inveja. Não vês os que dão esmolas e pregam pelo amor do aplauso? Considera quão cativo é o espírito da vanglória, chamado espírito porque tem o poder de inflar-se: não é sólido, nem verdadeiro, nem útil – é vão. Não é sólido, pois se esvai; não é verdadeiro, pois não se ampara na boa opinião; não é útil porque não te ajuda em teu fim - o Paraíso. A glória pode te buscar, mas não te deixes inflar. Considera quão cativo é o espírito da Ira, chamada espírito por ser impetuosa. Afeta as três formas da Paz: do coração, com o próximo, com Deus. Te leva a paz do coração porque te faz como o Mar, che non può assaltare la nave, se non si turba. Te leva a paz com o próximo pela discórdia que promove. Te leva a paz com Deus, porque defender-se a si mesmo é demonstar que não confias em Deus. A Ira de Deus é sua Justiça – mas é preciso lhe dar o tempo justo, pois é uma ira tranqüila. Considera o espírito da inveja, chamado espírito porque seca – seca teus ossos. A inveja é chamada podridão, pois nasce do bem dos outros. Não é melhor render graças a Deus do que a outros? Quando cometeres um ato de inveja, castiga-te de pronto de forma solene, antes que a podridão te mate, penetrando-te nos ossos. A Ira e a Inveja são germes pestíferos do amor à glória humana. Odeia estes vícios que causaram a morte de Jesus, l’ira de’ Sacerdoti, sforzati dalla sua predicazione, l’invidia degli Scribi, storditi da’suoi prodigi.

(febbrajo vii, Gálatas 5, 25).

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Guillems es a vespras vengutz


Por uma curiosa coincidência, Isaac Fieri registrou a força do texto de Segneri e, em seu blog, havia uma referência ao mesmo experimento mental: o filme Groundhog Day (1993), escrito por Danny Rubin e Harold Ramis. Condenado a repetir o mesmo dia, o personagem de Bill Murray primeiro vive um pesadelo, tenta se matar várias vezes, mas aceita a redenção que, na leitura contemporânea, envolve realização romântica e a prática de pequenos atos de benevolência. O roteiro examina, ademais, com grande perspicácia o problema teológico da repetição e da redenção: ela proporciona o exame da própria vida, sempre evitado pelo personagem de Murray.

Há outro ângulo do experimento, também examinado pelo cinema em Retroactive (1997), escrito por Michael Hamilton-Wright, Robert Strauss e Phillip Badger. Nesse caso, Karen assiste um assassinato e, por meio de viagens no tempo, retorna ao mesmo ponto e tenta alterar o curso dos eventos, mas eles sempre se repetem para o pior. Repetir a vida de uma forma rendentora exige que você esteja no comando dos fatos - o que nem sempre é realista. Nada garante que um condenado à danação volte à vida e consiga corrigir seus caminhos, como sugere Segneri.

Muito depende da consciência de viver uma segunda chance. Há um célebre episódio de Star Trek New Generation em que a Enterprise está condenada há um ciclo catastrófico que repete, sem saber que está repetindo. Nesse caso, a passagem do tempo é neutra e o roteirista teve de inventar um recurso extraordinário para que o comando da Enterprise percebesse que estava preso em uma armadilha temporal.

Ora, se tudo depende da consciência, Segneri está correto em apelar para um thougt experiment. Imagina, nesta vida, que podes reverter o seu curso, como se começasses uma outra.

Pós-escrito: O episódio de Star Trek New Generation é Cause and Effect, número 18 da quinta temporada, exibido em 23 de março de 1992. O roteiro é de Brannon Braga e traz a Enterprise presa em um time loop. A tripulação descobre que está em um ciclo catastrófico que se repete, mas precisa receber uma mensagem que lhe indique como sair do ciclo. Data e Riker tem suas alternativas, mas Data percebe que a sua é mero fruto de uma memória e não uma mensagem. Adota a saída de Riker e a Enterprise evita a colisão com a Bozeman. A primeira nave estava no loop há 17 dias; a segunda, há oitenta anos. Uma vez mais, é preciso a consciência correta de uma repetição temporal para que seja evitada a catástrofe. Ou o Inferno, como quer Segneri.

domingo, 23 de agosto de 2009

Docebat autem discipulos suos

Considera Che gli anni passano presto, e che sai cosi, voltati indietro e rimira quei c’hai già scorti. Como parecem breves e assim hão de parecer os que ainda vêm. E todavia os gastas com vaidades? Vai-te a fazer a boa oração, a salmejar, a estudar, a operar em prol do próximo. Colherás na Eternidade o que houveres semeado no teu tempo. O tempo não é apenas curto: é irrevogável. É como a água que corre em seu leito. Ó, como lamentarás, na hora da morte, o tempo perdido. Vê como o tempo é precioso! Toda a partícula de tempo, se bem a traficas, te pode aproveitar muito em uma Monarquia, a maior do Universo. Considera o que não faria um danado se ressuscitasse e pudesse começar tudo de novo. Cuidas que desperdiçaria o tempo dado por Deus? E se tivesses de dar um preço ao tempo se não pudesses mais tê-lo? La vita umana é uma strada, La qual si batte uma volta sola. Chi sà pigliare le opportunitá ch’egli incontra de arrichire, di aprofittarsi, beato lui. Chi le trascura non può in eterno tornare indietro a corrigere l’error fatto.

(febbrajo vi, Jó 16, 23)

sábado, 22 de agosto de 2009

Quan l'us de l'autre si gausis



(Imagem: Pasinelli, Lorenzo, 1629-1700. Concerto de Anjos (c. 1650). Gravura, água-forte).

terça-feira, 18 de agosto de 2009

de paradiz fora tots dons.


A nota para o dia 5 de fevereiro traz um registro importante - a escolha de Jesus; e uma idéia belíssima: a opinião que sobre cada um têm os anjos no Paraíso. Não achei ainda a versão que procuro do Tratado do Anjo da Guarda, do padre Antônio de Vasconcellos, cuja primeira parte foi publicada em Évora, em 1621, e a segunda (Obra do Anjo da Guarda), em Lisboa, no ano de 1622, mas é possível adiantar alguns comentários.


Existe um livro recente sobre a existência do livre arbítrio no Paraíso e não me lembro se faz menção à figura empregada por Segneri: a opinião angélica sobre cada um. O que de mim pensam os Anjos? é a pergunta que recomenda. Julgo difícil sustentar, contudo, seriamente, que os Anjos possam ter uma opinião que não seja exatamente a de Deus. Não tendo eles o livre arbítrio, não podem ter um julgamento, sobre nós, que seja independente da condenação ou da graça de Deus.

Há uma exceção, naturalmente: aquele Anjo e seus companheiros que não se curvaram diante do Homem. Estes seriam os únicos Anjos que poderiam, sem contradição, ter uma opinião sobre cada um dos homens.

Sobre a escolha de Jesus Cristo, é inevitável a comparação com a escolha da justiça, tal como exposta por John Rawls. Sua conclusão é conhecida: a incerteza de nossa posição na Ordem do Mundo nos faz racionalmente escolher uma Ordem em que a pior posição pode ser, apesar de tudo, tolerável. Estranha a Justiça de Deus: podendo escolher sua posição na Ordem do Mundo, deixou que lhe coubesse, na condição de Homem, uma completamente intolerável.

(foto: John Rawls)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

sustinuit crucem, confusione contempta

Considera qual’è questa bataglia, che ti è proposta, propositum tibi certamen. É aquela que sustentas contra os três inimigos, imoderado amore alla roba, imoderado amore ai piaceri, amor da reputação. Primeiro deves deixar de lado os impedimentos, depor o peso dos pecados para enfrentar mais leve a batalha. Segundo, deves tomar o exemplo de Jesus, um Senhor tão delicado. Pega o crucifixo e pondera sua Paixão. Considera que ele não te propõe uma batalha que lhe era desconhecida. Ele escolheu ser pobre, ele escolheu a dor, escolheu o desprezo. A ti fará muito superar a pobreza para servir a Deus, superar a Dor, mas antes de tudo fará o superar o Desprezo. Considera que não se diz (Hebreus 12, 1) que Cristo superou o desprezo, se diz que o desprezou, confusione contempta; porque este é o modo de superá-lo facilmente, desprezá-lo. Isto faz aos tementes um pouco de confusão; a muita estima dos juízos humanos. Que importa a ti aquilo que te diz a gente? A verdadeira estima é aquela que se forma de ti no Paraíso, entre os Anjos, entre os Arcanjos, no trono augusto das três Pessoas Divinas. Àquela pois, é necessário, que olhes. Esta dos homens é vã, é instável, é injusta, é enganadora e, para ser breve, deixa-a andar. Como seja. Questo in uma parola è cio, Che ci vuole a vincere facilmente la confusione, non l’aprezzare.

(febbraio v, Hebreus 12, 1)

domingo, 16 de agosto de 2009

Quan dui amant fin e coral


Até o momento, não consegui descobrir a fonte usada por Paolo Segneri para atribuir a Mithridates a transformação em porco, em sua nota referente ao 4 de fevereiro. Essa transformação é um tropos comum na Antiguidade, sempre consequência de um comportamento lúbrico ou desordenado. O mais célebre exemplo, naturalmente, é a transformação dos companheiros de Ulisses em porcos por obra da feiticeira Circe. O herói não teve a mesma sorte, como se sabe, por ter recebido um oportuno antídoto.

Curiosamente, há vários pontos de contato entre essa lenda e a referência de Segneri. Circe, segundo algumas versões, fora esposa de um rei sármata e habitara o Cáucaso. Mithridates era rei do Ponto, mas se refugiou na Armênia certa vez. Tinha o hábito de consumir poderosos antídotos para se prevenir de qualquer envenamento. Dormia cercado de animais, para ser avisado da aproximação de um assassiono: um cavalo, um cão e um javali.

Tenho a impressão de que Paolo Segneri produziu uma curiosa associação de idéias.

(imagem: Circe e seus porcos, 1892. Briton Rivière. 1840-1920 )

et aissi er lur gaugz entiers

Em comentário abaixo, Isaac Fieri chama atenção para a proximidade entre a mística de São João da Cruz e a citação de Santo Agostinho por Segneri, na nota referente ao 4 de fevereiro. Suspeito, porém, que o objetivo, de Agostinho e de nosso jesuíta predicante é menos místico que edificante. Naturalmente, o platonismo admite um leitura mística, mas esse caminho seria de pouca utilidade para um pregador missionário. Segneri busca trazer pessoas comuns à vida religiosa e não exaltar vocações místicas. O caráter problemático da citação - a possibilidade de perfeição na Terra - não se aplica à vocação mística. Os problemas, nesse caso, são bem outros e deles São João da Cruz, por sinal, não escapou.

sábado, 15 de agosto de 2009

Car Amors vens los venzedors

Para sustentar a afirmação ousada de que cada um é aquilo que ama - seja o Bem, seja o Pecado -, usa uma direta citação de Santo Agostinho. Está no comentário sobre a Epístola de João: Quia talis est quisque, qualis eius dilecto est (2.14.5). Cada um é tal como é seu deleite. A frase é problemática: alude à dissolução das fronteiras entre o Homem e Deus. Precisa ser explicada em seu evidente platonismo.

O emprego da expressão latina em um mecanismo de busca na internet revela a pertinência imediata da preocupação. Nos tempos que vão, poucas coisas parecem vedadas ao Homem, entre elas a aspiração à divindade. Segneri, talvez sem refletir, abraçou um caminho teológico perigoso, merecedor de comentário. É o que faz o também jesuíta David Vincent Meconi, em um cuidadoso artigo publicado ainda no ano passado: “Becoming Gods by becoming God’s: Augustine’s mystagogy of Identification”. Augustinian Studies 39:1 (2008), 61-74.

Começa Meconi: “Mas o que está implícito em tal identificação? Como podem os crentes se tornar os objetos que encontram na narrativa cristã? Este ensaio sustenta que a insistência de Agostinho para que os fiéis se tornem coisas de Deus é motivada por três convicções centrais. Primeira, a natureza icônica do cosmos. O mundo visível é sinal e manifestação de seu criador invisível. Segunda, a concepção de Agostinho do papel e propósito dos sinais que contêm e indicam realidades mais altas. Ele sabia como Deus educava seu povo por meio de coisas visíveis para que melhor aprendessem as invisíveis. Terceira, a teoria que chamarei de diligência simpática, a profunda apreciação de Agostinho do poder do amor em transformar o amante naquilo que ele contempla. Para concluir, este ensaio levanta o freqüentemente esquecido coração da soteriologia de Agostinho – a humanidade se tornando deuses." (pág 63).

Meconi não se preocupa em questionar a origem platônica dessa idéia, as teorias do amor e do conhecimento expostas, por exemplo, no Banquete. Limita-se a descrever a adaptação cristã conduzida por Agostinho:

"Neste ensaio, vimos como os símbolos religiosos são usados por Agostinho para chamar os crentes mais intimamente à vida divina. A liturgia se torna, assim, o locus deificandi, o lugar onde o drama da salvação humana é não apenas revivido, mas efetivado. Cercado pelo templo do louvor e tudo o que há em seu interior, as pessoas devem contemplar como Deus demanda que se tornem seus sinais vivos. Ouro, óleo, árvores, o altar do sacrifício, o Sabá e o canto dos cristãos são todos constituídos para cultivar a vida plena dos que são batizados e para chamá-los a uma união mais próxima com o divino, tornando-se deuses por se tornarem de Deus” (pág 74).

Em sua conclusão, o jesuíta Meconi usa, então, precisamente a citação do comentário de Agostinho e registra que no seu parágrafo 48 o Segundo Concílio Vaticano adota a mesma retórica, pedindo a participação ativa dos fiéis.

Não se trata, aqui, de uma vã sutileza. Segneri e Meconi desmentem, na aceitação tácita da idéia platônica, um cristinismo baseado na negação das coisas belas desse Mundo. Onde há beleza, há um caminho para Deus, sugeriu o filosófo ateniense e concordou o bispo de Hipona. Os dois jesuítas fazem apenas um comentário tardio.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Magister, increpa discipulos suos

Considera la differenza ammirabile, la qual passa tra l’intelleto, e la volontà. Se um pensamento abominável te molesta nem por isso te fazes abominável. Evita, porém, que em ti a vontade se transforme em ato. É quando te tornas terreno, animalesco, diabólico. Considera que essa transformação foi posta na alma pela deformidade do Pecado. Vê como o Pecador na Escritura é chamado de Víbora, de Cavalo, Cão e Porco por amar o que é próprio desses animais. Assim foi com Mitridates, rei da Armênia. Considera que, quem ama o abominável, se faz abominável. Cada um é como o que ama, disse Agostinho. Mas a Deus não basta um amor de simples complacência. Dev’essere efficace, vivo, veemente, e símile a quel che pruovi dentro te stesso, quando sai d’amar daddovero.

(febbrajo iv, Oséias 9, 10).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Per la via se cantavano


É bem possível que Massei estivesse consciente da transformação que registrou, do jovem promissor ao pregador missionário, cujo trabalho se estenderia por quase trinta anos, entre 1665 e 1692, quando o Papa lhe chamou a Roma.

O biógrafo comenta todas as fases da formação e da maturidade de um jesuíta militante. O estudo das Orações de Cícero com o propósito anunciado de aprender como mover corações e mentes. O desejo de oferecer-se ao martírio. A crise espiritual, iniciada subitamente em Peruggia, à qual não falta nem mesmo a motivação pontual da surdez que o acometeu. O ímpeto de livrar-se de todo e qualquer bem material desnecessário para sua missão. (Quem nunca sentiu que a posse de objetos materiais é um obstáculo para o cumprimento de um destino espiritual?)

Por fim, a descrição de suas prédicas religiosas, verdadeiros acontecimentos públicos se desdobrando de vilarejo em vilarejo, a partir de um planejamento detalhado, e acompanhados dos maiores cuidados na expressão do sentimento religioso. As caminhadas que fez descalço e mal vestido, as lágrimas abundantes na condução da missa, a reconciliação pública de inimigos jurados, os cortejos, as curas milagrosas, etc.: não há nisso tudo um sinal da realização pessoal do militante autêntico, pouco interessado nas sutilezas da hierarquia de uma organização e dedicado ao trabalho de campo? Não há algo de estranho e, ao mesmo tempo familiar, nesse leitor de Cícero e tradutor do latim andando pelas estradas esquecidas da Itália para falar de Jesus Cristo?

(Raguaglio, capítulos 5 a 11).


(Imagem: Ciro Ferri, 1634-1689, Prediche dette nel palazzo apostolico da Gio Paolo Oliva... In Roma : Ap Gio. Casoni, [entre 1655 e 1683]. Gravura: buril e água-forte.)

sábado, 8 de agosto de 2009

Ab lo comte de Lovanic

“E porque a experiência mostra o pouco abalo e movimento, que nos pecadores grandes faz a pregação dos vivos, desejara eu que antes os mortos vieram pregar a estes frenéticos da culpa para que tornaram em si, dando volta à vida e largando a loucura miserável em que vivem: para que com este meio ou largassem as culpas ou se justificasse mais a causa de Deus: porque mais abalo faz em pecadores obstinados da pregação de um morto, do que muitos clamores de um vivo”

(Frei Antonio das Chagas, Escola de Penitência e Flagelo de Viciosos Costumes. Sermão Quinto. Em que se trata da grande Dificuldade em que há em se converter a fazer penitência a Nobreza e Fidalguia, principalmente nas Cortes, págs 342-343, Lisboa, 1687).

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Bem meravill on a son cor


Em abril de 2007, o instituto Datafolha publicou uma extensa pesquisa de opinião sobre o estado das práticas religiosas no Brasil, revelando um panorama de relativa intensidade.
Ao responder um questionário, a pessoa não precisa dizer a verdade, mas as taxas alegadas de comparecimento a cultos é elevada no país:

O percentual de fiéis que costuma ir à Igreja, cultos ou serviços religiosos não difere muito, quando se trata da religião declarada: 94% dos católicos, 98% dos evangélicos pentecostais, 99% dos não pentecostais e 95% dos espíritas dizem ir. Os umbandistas e os adeptos do candomblé costumam ir um pouco menos a serviços religiosos (82% e 84%, respectivamente). Quando se trata da freqüência, os evangélicos pentecostais se destacam: 60% deles dizem ir ao culto mais de uma vez por semana e 25% declaram presença pelo menos uma vez por semana. Entre os católicos essas taxas são de, respectivamente, 16% e 35%. Um terço (30%) dos que declaram não ter religião ou que se declaram ateus dizem ir à igreja, a cultos, ou serviços religiosos.

É fácil notar que a distância entre os números de comparecimento e de frequência recomendam cautela. Se 60% dos evangélicos declaram assistir cultos mais de uma vez por semana, apenas 16% dos católicos fazem o mesmo. Dentre os católicos, a maioria da população, apenas 41% vão à Igreja pelo menos uma vez por semana. Por sinal, no Brasil, mesmo os ateus vão a cultos religiosos.

A pesquisa sugere ainda que o culto religiosos pode ter se transformado em um assunto de ordem particular. Poucas pessoas declaram ir à Igreja para ouvir padres e pastores ou mesmo dar graças. O centro da religião contemporânea no Brasil é a prática da oração:

Os entrevistados que costumam ir à igreja ou a cultos e serviços religiosos dizem que têm esse hábito porque, entre outros motivos, gostam de rezar ou de orar (21%), porque se sentem bem, fortalecidos ou em paz (19%), para pedir uma graça (13%), para escutar pregações ou sermões (12%), para se aproximar, cultuar e servir a Deus (10%) e para agradecer por graças obtidas (9%).

Não se pode, contudo, afirmar que a religião é apenas um ritual privado. Um quinto dos entrevistados afirma ter mudado sua vida como resultado de orientação religiosa:

Aproximadamente um quinto (21%) dos entrevistados afirma já ter mudado algum hábito ou deixado de fazer alguma coisa por causa de sua religião. A maioria (54%) dos evangélicos pentecostais já fez mudanças em sua vida diária por motivos religiosos. As mudanças mais citadas por esses entrevistados foram parar de beber ou diminuir o consumo de álcool (24%), deixar de ir a bailes, festas, de sair à noite (21%), parar de fumar ou reduzir a quantidade de cigarros consumidos (15%), mudanças no vestiário (7%), parar de usar maquiagem e adereços como brincos, por exemplo (6%).

A taxa dos que dizem já ter mudado seus hábitos por causa da religião também fica acima da média entre os evangélicos não pentecostais (45%), entre os adeptos do candomblé (47%) e entre os espíritas (29%). Entre os católicos, por outro lado, 90% dizem nunca ter mudado sua rotina por causa da religião; entre os umbandistas essa taxa é de 81%.

Os números mostram, contudo, que o processo de conversão (típico das religiões protestantes) ou uma identidade cultural específica (caso das religiões de origem africana) respondem pelo poder de modificação dos hábitos pessoais em função de crenças religiosas. Os católicos, maioria da população, declaram não mudar seus hábitos pessoais por causa da religião.

Esses números expõem sob outra luz o indiferentismo religioso denunciado por Segneri, um pregador responsável por centenas de missões de predicação nas áreas rurais da Itália no século XVII. O fervor religioso não é uma característica da maioria dos crentes, a não ser em condições muito especiais.

Stubepant autem omnes, qui audiebant

Considera, che, ò tu attendi alle operazioni degli uomini, ò tu ne ascolti i discorsi, troverai tra esse pochissimi Penitenti. Muitos querem, poucos atingem. Mas o que vale uma vontade que não venha à obra? Daqueles que hão querido se penitenciar e não o fizeram, está cheio o Inferno. Considera quanto fazem penitência quando já estão fartos de pecar. Ninguém faz a Penitência porque não se pergunta: o que fiz? Não se medita no que se fez ao pecar. Oh quanta ragione hai di gridare: quid feci? Misero me, quid feci? quid feci? Ma tu non vi pensi.

(febbrajo iii, Jeremias 8, 6).

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Adormir! pron dormiren, pro


Depois da versão de Segneri, a aproximação da Morte segundo Jorge Luís Borges:

Límites

Hay una línea de Verlaine que no volveré a recordar.
Hay una calle próxima que está vedada a mis pasos.
Hay un espejo que me ha visto por última vez.
Hay una puerta que he cerrado hasta el fin del mundo.
Ente los libros de mi biblioteca (estoy viéndolos)
Hay alguno que ya nunca abriré.
Este verano cumpliré cinquenta años:
La muerte me desgasta, incesante.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

et occisus tertia die resurget

Considera che la maggior difficoltà di chi serve a Dio, pare che finalmente riducasi tutta quí, al non diffidar mai di lui, né tra le adversidades, nem entre as aridezas, nem entre aquelas ofuscações da mente, que fazem crer que ele já se tenha de nós totalmente subtraído. Quando Deus é evidente, fácil é operar; quando oculto, ele prova a tua constância. Considera o que se espera de ti. Primeiro, que o aguardes. Não te movas de teu posto, das Orações, da Confissão, da Comunhão. Considera que tal firmeza deve ser acompanhada de longanimidade, porque é fácil tê-la, mas não por muito tempo. Se o Senhor demora, pede por sua presença. Não duvides que ao fim ela haverá, pois ele a prometeu. Lembra de Simeão, que o teve entre seus braços. Non le pare ne meno di haver patiti i mali trascorsi; le par di haverli veduti. Prepara-te, pois, com boa face, para a sua chegada, pois a boa Morte é o prêmio dos que bem esperaram. Pensa que o Senhor já está vindo, que a Morte pode estar vizinha, que te chega, que te assalta. Quell accidente, che forse ha da cagionartela à già maturo. Cha farebbe dunque di te, se tu tra questo poco perdessi la tua constanza?

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

le donzellet ac tant plorat


As palavras de Segneri são fortes. A crucificação é uma suma nudez, uma suma dor, um sumo desprezo. Invoca, ao final, a figura de Santo Inácio de Antioquia (67-110), célebre por sua franca disposição ao martírio, consumado com o habitual terror: devorado por leões no Coliseu, sob o reinado do Imperador Trajano. A discussão sobre a autoria das cartas a ele atribuídas é infindável; não há dúvida, contudo, sobre o seu martírio e suas relíquias estão hoje guardadas no Vaticano. Ao menos, os ossos que restaram.

O martírio é algo repugnante para a sensibilidade moderna, que lhe atribui o estigma da ignorância e do fanatismo. O heroísmo na morte do soldado, do líder político e do cidadão comum é celebrado apenas ao ser enquadrado em um cálculo racional, ainda que concluído de forma funesta. A busca da morte pela morte, em nome de uma causa, é vista como um gesto bizarro e estrangeiro, como os monges orientais ateando fogo às vestes diante das câmeras de televisão no curso da guerra do Vietnã.

Os estudos científicos tendem, contudo, a refutar essa visão. A psicóloga Rona M. Fields em "The Psychology and Sociology of Martyrdom", um dos capítulos de Martyrdom: The Psychology, Theology, and Politics of Self-Sacrifice (edição Praeger, 2004) afirma, após estudar centenas de entrevistas com militantes religiosos radicais e pessoas que viveram experiências excepcionais de sofrimento ou tortura, que a jusificação do martírio pessoal é fruto de um longo processo de elaboração mental. As conexões que estabelece com a fisiologia da mente podem parecer exageradas, mas um fato é inegável: a disposição para o sacrifício pessoal não é um estado mental associado com indivíduos necessariamente violentos ou simplórios.

Ela poderia ter mesmo ensaiado uma conexão com as teorias da psicologia evolucionária: o sacrifício altruísta é um elemento importante na sobrevivência de espécies sociais. Não é surpreendente que seres humanos decidam morrer pelo bem da espécie em geral e não apenas para defender sua prole ou clã.

Rona Fields, contudo, nota outros aspectos do martírio, bem mais perturbadores. A sensação do ganho coletivo ou individual do martírio estaria associado ao seu caráter público. O evento assombroso ou macabro precisa servir de exemplo, precisa alimentar uma legenda. Um martírio secreto teria escasso poder atrativo para o crente ou o militante. Morrer por nada - este seria o terror.

Disse perturbador porque, como lembra um livro recente de Donald Kyle, Spetacles of Death in Ancient Rome (Routledge, 1988), a morte pública, do gladiador ou do condenado, era um espetáculo intencionalmente artístico. Não se tratava de uma execução, no sentido moderno do termo, a fria objetividade da forca e do pelotão de fuzilamento. A morte do Coliseu deveria divertir, instruir, ser criativa.

Quando um cristão, como Santo Inácio de Antioquia, se oferecia ao martírio estava plenamente consciente do que o esperava: uma morte pública e espetacular, capaz de se oferecer à memória dos séculos. Se tivesse permanecido na condição de terceiro bispo de Antioquia, morrendo obscuramente de alguma doença infecciosa, seria hoje uma mera nota na Coleção Migne. Morrendo devorado por leões em uma arena romana, pode surgir a qualquer momento, no cinema e na televisão. Por sinal, mesmo na condição de encenações, sem mortes reais, com leões treinados, continuam sendo espetáculos, imediatamente compreensíveis para os espectadores de Roma ou de hoje.

O mártir cristão sempre soube que a única utilidade real do Mundo é oferecer um lugar para o espetáculo de sua Cruz. Uma sociedade do espetáculo, como é a nossa, oferece, como Roma, o palco perfeito para o martírio.

(Imagem: O martírio de Santo Inácio de Antioquia, gravura medieval)