quinta-feira, 30 de julho de 2009

un gran servo di Dio

Sem idade para os votos, Paolo Segneri foi enviado ao Collegio Romano para completar seus estudos de Filosofia e Retórica. Despertou logo a admiração de mestres e superiores, caindo sob a proteção de personagens eminentes da Ordem, como o Padre Vicenzo Carafa e o o Padre Sforza Pallavicino, que se esforçaram para ampliar os horizontes de sua instrução. Seu talento para a predicação foi, então, cultivado também com as letras clássicas. Por esses anos, Segneri aventura-se mesmo no domínio erudito, traduzindo a A Segunda Década da Guerra de Flandres, do Padre Famiano Strada, editada em latim no ano de 1650.

A biografia não deixa escapar episódios mais extremos de devoção. A emulação natural entre adolescentes levou Segneri a extremos de penitência e flagelação, causadores, certa vez, de uma forte hemorragia interna e vômitos de sangue.

A instrução na Ordem permite uma fenômeno conhecido em escolas tradicionais: a memória coletiva. Massei pode recolher, assim, testemunhos de colegas e contemporâneos sobre Paolo Segneri: um grande servo de Deus, modesto, tranquilo, de vida irretocável.



(Imagem: frontispício de De bello belgico, de Famiano Strada)

sábado, 25 de julho de 2009

sua gran propensione al mestiero Apostolico

Massei registra o natalício de Paolo Segneri em uma data que se tornará célebre: 21 de março, mas do ano de 1624. Seu pai, Francesco Segneri fizera voto de castidade na juventude, sendo forçado pela família a aceitar o casamento com uma moça também educada e prometida ao claustro - Vittoria Bianchi. O biógrafo talvez não se dê conta da contradição desta piedosa gesta com os 18 filhos produzidos pelo matrimônio de Francesco e Vittoria, que continuaria a praticar em sua vida secular jejuns, disciplinas e penitências em meio à criação de tantos filhos.

Paolo revelou desde cedo a independência dos primogênitos e quando menino organizava prédicas em sua casa, atirando livros e outros objetos nos colegas que se atreviam a dormir durante seus sermões verberando pecados e pecadores com fúria infantil. Existe aqui talvez uma conhecida figura das biografias clássicas, quando o herói antecipa na tenra infância os triunfos de sua vida adulta. Tem sua graça inocente, porém, a imagem do futuro pregador, menino, castigando os desatentos da palavra de Deus.

A precocidade de seus dotes intelectuais levou seus pais a enviá-lo ao Seminário Romano, onde manifestou a imediata atenção de se fazer jesuíta. Foi ordenado noviço em 1 de dezembro de 1637, aos treze anos de idade, sob a direta orientação do célebre Gianpaolo Oliva, mais tarde Geral da Ordem. Em outra figura habitual das hagiografias, Massei atribui a seu pai alguma oposição à ordenação de seu primogênito, mas deve ser notado que em uma das notas do mês de janeiro do Maná da Alma Segneri condena de forma veemente esta atitude parental.

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Breve Ragguaglio della Vita del Padre Paolo Segneri. 1701.


Como lembra Quinto Marini em As biografias de Paolo Segneri, a biografia de um religioso como Paolo Segneri é sempre um confronto entre mitos e documentos, entre imagens e fatos, mas tal confronto nem por isso deixa de ser relevante como objeto de consideração. No caso de Paolo, esse estudo começa necessariamente pela obra de seu irmão jesuíta, Giuseppe Massei, escrita pouco antes de sua morte em 1698. Trata-se do Breve ragguaglio detta vita del venerabile servo di Dio, il padre Paolo Segneri della Compagnia di Gesù - descritto dal padre Giuseppe Massei della medesima Compagnia, publicado no primeiro volume da opera omnia segneriana (Parma, 1701).

A própria biografia de Massei tem uma trajetória curiosa. O privilégio para impressão da obra de Segneri foi obtido por Paolo Monti em 21 de outubro de 1699, do papa Inocêncio XII, cinco anos após sua morte, mas o patrocínio papal para a publicação da biografia veio apenas com Clemente IX e por meio de autorização específica do Geral dos Jesuítas, padre Tirso Gonzàlez, em 8 de março de 1701.

Na verdade, sua biografia havia sido vetada pela Companhia. Segneri era um adversário das teses probabilísticas de Tirso Gonzalez e tinha interesses teológicos mais profundos do que sugeria sua biografia de pregador, tendo já atacado, em 1680, o quietismo de Miguel de Molinos, com o radical La concordia tra la fatica e la quiete. Como afirma Quinto:

“Né si era lasciato intimidire dalla perentoria condanna dell'Indice, ma aveva continuato a combattere i molinisti, sostenendo l'importanza della meditazione razionale e l'impegno della volontà operativa”.
Adversário do " probabiliorismo " de Tirso Gonzàlez, tornou-se aliado de Innocenzo XII, menos rigoroso em matéria de moralização do clero:

“Questo Pontefice, che conduceva le sue battaglie di moralizzazione del clero con maggior diplomazia di papa Odescalchi, non doveva avere molta simpatia per il rigorismo del Gonzàlez, del quale non poteva inoltre apprezzare i cordiali rapporti intrattenuti col Fenelon. Fu proprio Innocenzo XII a chiamare a Roma il Segneri nel febbraio del 1692, perché predicasse la Quaresima nel Palazzo apostolico, e a Roma lo trattenne come teologo e consigliere spirituale.”

Nessa condição, Segneri conduziu seu combate interno com Goanzalez, publicando em 1692 três Lettere sulla materia del probabile. Não admira, pois, a resistência interna à publicação de sua biografia.
Quanto ao seu autor, é um personagem relativamente desconhecido. Sua vida é reconstituída apenas com material de arquivo. Giuseppe Massei nasceu em Lucca, em 1626, formou-se no Collegio romano e tornou-se instrutor em várias cidades entre 1667 e 1672. Deste ano até 1677 foi reitor do Collegio grego de S. Atanasio. Seu necrológio o recorda como bom professor e superior.

Antes de Segneri, havia escrito biografias de Francesco Saverio e do teólogo espanhol Francesco Suarez. Tomou como ponto de partida a Lettera al padre Rettore del Collegio di Firenze dal padre Giovanni Pietro Pinamonti sopra le virtù del padre Paolo Segneri de 1694 (publicada apenas em 1857), escrita por um companheiro da predicação rural de Segneri e já mencionando os episódios místicos, de auto flagelação e os milagres de Paolo Segneri. Sobre tais elementos Massei construriria sua obra. Uma narrazione alta, magniloquente, barocca, che ben si addice ad una Vita tutta spettacolare e " grande ".

Ihr, die ihr euch von Christo nennet


Ihr, die ihr euch von Christo nennet,
Wo bleibet die Barmherzigkeit,
Daran man Christi Glieder kennet?
Sie ist von euch, ach, allzu weit.
Die Herzen sollten liebreich sein,
So sind sie härter als ein Stein.

Vós, que de Cristo vos dizeis
Onde está a misericórdia
Por que é conhecido um membro de Cristo?
Está de vós, ah, muito longe!
Corações que deveriam ser ricos de amor
Estão duros como uma pedra!

(BWV 164, ária para tenor, poema de Salomo Franck (1659-1725), música de J.S. Bach)

(Imagem: Georgette de Montenay. Emblemes ou devises chrestiennes. 1571)

Legenda:

Pour avoir leu longuement l’escriture,
L’homme souvent en vain se glorifie.
Car science enfle: & qui n’a que lecture,
N’a pour cela l’esprit qui vivifie,
Ouvre le sens, & le coeur mortifie,
Chassant d’iceux tenebres d’ignorance.
Où est l’esprit, charité edifie.
Où il n’est point, il n’y a qu’arrogance.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

In hoc cognoscent omnes

Considera qual distintivo sia quello, onde il Signor ha voluto, che i suoi Discepoli, cioè i Cristiani, siano ravvisati dal rimanente di tutto il genere umano. Non i miracoli, non la scienza, non la saviezza, non alcun'altra di tante prerogative, che essi possegono: ma la dilezione scambievole. Vê o privilégio deste sentimento: ser a divisa do Cristão - é preciso enamorar-se. Não uma dileção ordinária, mas grande, maior que a tida por maometanos, gentios, judeus, por não seguidores do Cristo. Este é o signo. Um afeto demonstrado mesmo por seus perseguidores, em tempo de peste, comprando escravos e declarando-os herdeiros. Nenhuma religião no Mundo oferece tanta caridade quanto a cristã. Que força há maior que amar-vos uns aos outros? Não é maravilha que o Inferno busque destruir essa união. Não vê o que sucede ao círculo: quanto mais as linhas se aproxima do centro, mais unidas estão; quanto mais longe, mais divididas. É preciso buscar essa união em Jesus. Busca amá-lo e honrar esse amor; como honrar ao que tem tudo? Che tu ti volga a procurare di farlo almeno a coloro in cui benefichi lui. E tali sono i tuoi prossimi.

(gennaio xxxi, João 13, 35)

terça-feira, 14 de julho de 2009

Doas ymages ben formadas


A existência de fiéis capazes de abusar da paciência do Confessor, mostrando mais disposição para narrar suas desventuras reais ou imaginadas do que para endireitar suas veredas, em pleno século da Contra Reforma, na Itália, confirma a curiosa ambiguidade do sacramento. As tradições judaicas reservam a confissão dos pecados para o diálogo silencioso com o Senhor; o Cristianismo a trouxe para a turbulência da comunicação entre os homens. A confissão perturba, atiça e desconcerta.

O sacramento, em si mesmo, é psicologicamente consistente. É grande, por exemplo, o número de crimes resolvidos por meio da confissão obtida pela leve pressão das evidências. Muitos criminosos preferem justificar seus atos do que conviver com os meandros insondáveis da mentira. No plano da conduta pessoal, certos atos completam seu efeito sobre o autor apenas com a confissão, mais ou menos reservada. No fundo, é mais um rito católico cuja mistura de verdade humana e espetáculo social fascina a modernidade. Há toda uma indústria acadêmica, florescente na França e outras regiões de cultura latina, voltada para as delícias sexuais da confissão dos pecados. Muita metafísica vem sendo construída, na verdade, sobre triviais realidades humanas.

O problema real, como notou Paolo, está no Confessor, não em quem confessa. É sobre ele que pesam as escolhas morais mais graves: a responsabilidade pelo segredo, a decisão sobre a sinceridade de quem confessa, a compreensão sobre a natureza do ato confessado e a escolha da penitência. Sem falar, naturalmente, sobre a cenografia da confissão, preservada sempre que possível do olhar do vulgo.

Tome-se o caso notável de Mockaitis vs Harcleroad, decidido pelo U.S. 9th Circuit Court of Appeals em 27 de janeiro de 1997.

Timothy Mockaitis é um padre da diocese de Portland, no Oregon, que ouvia confissões de presos pela polícia local. Dentre estas, a de Conan Wayne Hale, acusado, junto com outro indivíduo, do assassinato de três adolescentes: sua ex-namorada, o então namorado dela e mais outro rapaz que por acaso estava com ambos. O procurador Douglas Harcleroad procurava definir a participação de Hale nos assassinatos e, assim, decidir se pedia a pena de morte. Tendo conhecimento das atividades do padre Mockaitis, ordenou aos responsáveis pela cadeia do Condado de Lane que gravassem a confissão. Todas as conversas de Wayne Hale, por sinal, eram mantidas por meio da parede de vidro e quase a totalidade era monitorada.

O procurador obteve sua gravação, mas Hale não admitiu, em sua confissão, ter assassinado os adolescentes, atribuindo a culpa ao cúmplice e admitindo perante o padre apenas a culpa pelo ódio que dele sentia. Nesse ponto, o padre Mockaitis e a diocese de Portland entraram na Justiça Federal, alegando violação da Quarta Emenda, da Lei de Proteção da Liberdade de Religião e da legislação referente à escuta telefônica.

O procurador Harcleroad venceu na primeira instância e mais: conseguiu demonstrar perante a corte que o réu, Wayne Hale, tinha a certeza de que sua confissão seria gravada. Por isso, não admitiu qualquer envolvimento nos assassinatos e, supreendentemente, permitiu a divulgação da confissão. Uma das únicas dispensas aceitáveis, perante o Direito Canônico, do "selo da confissão". Qualquer observador imparcial diria que Hale manipulou a boa fé de seu Confessor, certo de que o procurador não respeitaria o segredo do Sacramento. O padre Mockaitis era, de fato, a grande vítima de todos os atos praticados e buscou reparação na Corte de Apelos.

A erudita decisão do Juiz John T. Noonan, indicado pelo presidente Reagan, revela que não havia precedente conhecido para a violação do Sacramento da Confissão por razões judiciais e determina a reversão do veredicto da corte de primeira instância. Textualmente:

"The Remedies. We remand for a grant of the plaintiffs' request for declaratory relief, holding that the taping of Father Mockaitis's encounter with Hale and its subsequent seizure by Harcleroad violated RFRA and the Fourth Amendment. We remand to the district court for the issuance of an injunction in favor of Father Mockaitis and Archbishop George. The injunction may be tailored to fit the expectation of clergy under ORS Evidence Code, Rule 506 and so should restrain Harcleroad and his agents and employees from further violation of RFRA and the Fourth Amendment by assisting, participating in or using any recording of a confidential communications from inmates of the Lane County Jail to any member of the clergy in the member's professional character."

Curiosamente, a decisão judicial pouco alterou a configuração do caso. A confissão de Hale seguiu de domínio público, sem ajudar sua situação, pois a evidência não foi reconhecida, de acordo com as leis do estado de Oregon. O padre Mockaitis obteve, contudo, o reconhecimento da proteção judicial do Sacramento da Confissão tanto pela autoridade da Quarta Emenda, quanto pela lei de Restauração da Liberdade de Religião.

Hale, um assasino frio, que mereceu até mesmo a revolta do juiz que decidiu o caso, foi condenado à morte:

"Conan Wayne Hale Inmate number: 11405546
Born: 28/12/1975 Place of birth: Eugene, Oregon
Crime: Aggravated murder
On death row since: 28/05/1998
Sentence: Death by lethal injection
Date of Sentence: 25/05/1998"

São João Nepomuceno (1345-1393) não teve a mesma sorte do padre Mockaitis. Detentor de segredos confessionais da rainha da Boêmia, não os quis revelar a Venceslau, rei dos Romanos e da Boêmia. Foi jogado no Moldava e afogou-se. É considerado o primeiro mártir do segredo da Confissão.

(Imagem: José Campeche Jordan. São João Nepomuceno, cerca de 1798).

domingo, 12 de julho de 2009

In patientia vestra possidebitis animas vestras

Considera, che l'impaciente ha questo male il qual è formidabilissimo: Non è padrone di sè: mercé che non è padrone né del suo intelletto, né della sua volontà. Não espera pelos ditames da razão, quem é impaciente, exalta a própria estultice. Não controla sua vontade, pois não suporta os infortúnios e é levado ao Pecado. Se és impaciente, qualquer homem te manipula; se és impaciente, és o ponto fraco à disposição dos demônios. O Impaciente não consegue, principalmente, esperar pela Graça de Deus. Ora reza em excesso, logo desiste; ora muito frequenta os sacramentos, logo os abandona; ora busca as lições dos livros espirituais, em seguida, dos pestíferos. A paciência, na qual grandemente consiste a perseverança ordinária é aquela que te dispõe à perseverança final, em que consiste a salvação da alma.

Considera que alguns à força de paciência querem salvar-se, mas a paciência dos outros. Assim fazem os escrupulosos, que não suportando a tristeza dos seus pensamentos desconcertados, cansam a paciência do Confessor com coisas importunas, tediosas, condenadas mais de uma vez. Porque sua disposição não é de submeter-se à obediência, é de satisfazer-se. Assim fazem os religiosos que querem salvar-se à custa da paciência que alegam faltar a seu Superior. Assim fazem muitíssimos que querem salvar-se graças a paciência dos outros. Questa non è buona regola. Stacca il tuo cuore dell'afetto eccessivo di te medesimo. Estás em um campo de batalha na Terra, depois hás de ter a paz. Guarda as palavras de Cristo em Lucas 21, 19. Vedrai se sono un potentissimo antidoto.

(gennaio xxx, Lucas 21, 19)

sábado, 11 de julho de 2009

Per Deus, Amors, mal sabes traire!


Um sorriso é inevitável ao registrar o duplo sentido das palavras de Paolo sobre São Francisco de Sales: "um santo de hoje". De fato, São Francisco (1567, Thorens -1622, Lyon) faleceu nas décadas vividas ou lembradas por Paolo, personagem típico - ou assim visto alguns séculos depois - da Contrareforma. Nobre de família, São Francisco realizou sua vocação política e intelectual apenas na Igreja Católica, à qual emprestou a verdade de suas palavras e mais ainda a de seus atos. Há uma certa expediência aristocrática na forma com que dispensa questionamentos teológicos mais profundos, em moda nos tempos da Reforma, em favor da manifestação do amor a Deus e ao próximo. Sua Introdução à Vida Devota lembra que a santidade está disponível para qualquer um, em qualquer situação, não é uma questão ritual ou misteriosa. Foi canonizado em 1665, por Alexandre VII; proclamado Doutor Universal da Igreja por Pio IX em 1877.

Afinal, a realização da obra de caridade sobrenatural não é uma questão de número, de emoções, de sentimentos, mas de agir com a mente em Deus. Logo no capítulo 3 da Introdução ele esclarece: É um erro, mais ainda, uma verdadeira heresia, procurar banir e vida devota da sala de guarda do soldado, da oficina do trabalhador, da corte do Príncipe ou da cozinha doméstica. Naturalmente, uma devoção puramente contemplativa, tal como é própria do religioso e da vida monástica não pode ser praticada nessas vocações, mas há vários outros tipos de devoção bem adequadas aos que vivem uma vocação secular, pelos caminhos da perfeição (parágrafo 11).

Curiosamente, os tempos modernos revelam-se, em comparação, quase medievais: só acreditam na santidade diante de evidências de excentricidade pessoal ou de prodígios midiáticos (pedem um sinal, como observou Jesus). Ou seja, acreditam apenas em celebridades. Além disso, preferem, antes do que a caridade, a idéia de justiça social, que exime os beneficiados do sentimento de ser objeto de uma atenção especial e transforma os caridosos em meros reparadores de uma injustiça. Uma forma cínica, sem culpas nem remorsos, de considerar a desigualdade entre os homens.

(Imagem: São Francisco de Sales, autor desconhecido, final do século XVII)

sexta-feira, 10 de julho de 2009

tamquam te ipsum

Considera, che non ogni atto di beneficenza, che usi verso il tuo prossimo, vestendolo, ristorandolo, ricreandolo, consolandolo è atto de Carità sopranaturale (qual è quello, del quale in questo luogo si parla) ma solo quello, che verso di lui per amor di Dio, che ti ha racomandato quel prossimo, come appunto se fosse la sua persona. Os atos da Caridade Sobrenatural são os maiores atos da Religião. Não basta se emocionar com a pobreza e a privação. Deves elevar a mente a Deus e não fazer obra de oleiro, sem atenção ao trabalho que faz. Considera que o Senhor bem te dispensa da Missa, por obra de Caridade, mesmo não sobrenatural. Considera que o dispensa mesmo das penitências pessoais, dos jejuns. E tu não perdoas o próximo do mesmo modo. Considera como deve ser a Caridade: amar o próximo como a ti mesmo, não quanto a ti mesmo. Pois o Senhor nada ordena que esteja além das leis do amor próprio. Pois disse o Apóstolo me sigam segundo a Caridade e emulem os dons espirituais: pois os bens espirituais podem ser possuídos sem prejudicar ninguém. A gli altri cedere spesso un bene da niente, como è danaro, gloria, grandezze, comodità, per te sempre procurerai un bene eterno. Considera finalmente que os sacrifícios demandados por Deus na antiga lei eram três. O sacrifício do pecado, para a remissão, a vítima consumida no fogo e partilhada com o sacerdote. O sacrifício da paz, da prosperidade, da saúde, divido em três partes, consumida no fogo, ao Sacerdote, ao ofertante. O sacrifício do holocausto, toda a vítima era consumida no fogo em honra de Deus, denotando estado sublime de perfeição, quando nada se retém. Esta é como deve ser a Caridade: oferta apenas a Deus, em sua pessoa. E questo fu quell'olocausto, eccelsissimo, che sempre offerse a Dio quel gran Santo d'oggi S. Francisco di Sales.

(gennaio xxix, Marcos 12, 12).

quarta-feira, 8 de julho de 2009

qu'eu sonarai per vos matinas

A duração do Inferno representa um clássico problema teológico, mas é notável que Paolo Segneri examine também a natureza da beatitude. Não recua sequer diante da possibilidade do tédio (usa literalmente a palavra) e não incorre nos paradoxos da comparação com os prazeres sensuais da Terra a não ser em um caso: a experiência musical. Cantar para o Senhor uma nova canção - assim viu João a ventura eterna.

Condenada ou beatífica, a existência individual no além mundo não enfrentava ainda as dificuldades implícitas na crítica das noções cartesianas relativas à coerência do ego. Nesse plano de análise, os problemas nem chegam a ser as dificuldades associadas à definição empírica da mente humana, registradas já ao final do século XVIII. Os desafios postos pelo estudo da fisiologia do cérebro são muito mais profundos, ao questionarem mesmo a solução iluminista: não existe seguer garantia de uma unidade subjetiva da percepção do mundo externo. Um bom resumo desses graves problemas está no capítulo 12 de Reasons and Persons, publicado pelo filósofo Derek Parfit em 1984. Dois deles interessam aqui: (1) manipulações cirúrgicas do cérebro podem produzir duas unidades subjetivas distintas para percepções externas; (2) a mera aplicação de um paradigma relativístico aos eventos mentais basta para defini-los em função de um rede de relações e não de um substrato psico-físico.

Não é difícil estabelecer a conexão desses problemas com os desafios assumidos por Paolo: a duração do Inferno e a natureza da beatitude. Quanto mais incerta a definição de uma alma individual, mas incerta será a compreensão de sua capacidade de vivenciar um tormento eterno ou uma eterna exaltação.

Por sua vez, o argumento confessional poderia perfeitamente inverter o paradoxo e justamente postular que nossa existência fragmentária e caótica na Terra é um efeito da atual junção com o corpo material. Esse dualismo - cujos paradoxos são devidamente registrados por Parfit ou Dennett - seria precisamente superado pela Morte. A alma existiria, na acepção correta no termo, em sua unidade fundamental, apenas no além mundo. No aquém, seria o que conhecemos: um frágil colcha de retalhos.




(Imagem: cena de Matrix (1999): Morpheus oferece a Neo duas versões da realidade)

terça-feira, 7 de julho de 2009

Vae vobis, qui ridentis nunc

Considera, che quella Casa, nella quale tu abiti di presente, non è altrimenti, a dir vero, la casa tua. Ella à più tosto un'ospizio, che ti ricetta a tempo, e a tempo anche breve. Teus mais caros serão os primeiros a se livrar de ti, quando aprodreceres. A tua casa é a sepultura. Dela não mais sairás para rever nenhum daqueles que tu conheces. Somente hás de sair quando a destruição universal do Mundo se cumprir. E a sepultura não é sua verdadeira casa, mas apenas de teu cadáver. Sua casa será a eternidade - o Paraíso ou o Inferno. Não há outra. O que fazes para te condenar? Bastaria talvez empenhar-te a meias para conquistar o Céu. Os ímpios começam a preparar a danação primeiro com atos, depois com palavras, por fim desejam a danação: Se mi dannerò, faccia Dio. Considera a duração do Inferno. Passará todo aquele número não uma vez, mais mil e depois mil e depois mil e depois incessantemente outro mil. E ainda tudo outra vez. Terrível eternidade! Quem pode jamais compreendê-la? A ti não parece mal correr esse risco? Não temes o fogo que se abateu sobre Sodoma? Considera, por outro lado, esta mesma eternidade no Paraíso. Perpétua paz, riso, recreação, perpétua festa, sicche andranno poco a poco annegando in un soave naufragio di contentezza, senza che mai trovino fondo. Poderia parecer que depois de grandes milhões de séculos, e milhões, e milhões, a beatitude chegaria ao tédio. Ma non à vero. Sempre sarà como nuova. Quando São João a viu, disse que cantavam sempre cânticos novos. De aqui se argumenta que estranha beatitude seria aquela, a qual sempre te pasce, sempre te agrada e jamais te sacia. Uma canção de três horas, por bela que seja, não pode mais te agradar; um banquete que dure um dia inteiro, uma comédia que dure uma noite inteira. E esta beatitude é ainda assim cara que então não seria beatitude se surgisse a suspeita que devesse cessar um só momento, ou mudar-se.

Considera tua estultice ao considerar tuas casas de eternidade. Tanto fazes para ter uma boa casa na Terra e não farás nada pela casa em que estarás por todos os séculos? A eternidade, nota, não é da casa, mas do habitante, a eternidade será tua. E così vuol dirsi con ciò, che tu sei eterno, che la casa è eterna e che vi havrai da abitare anche eternamente.

(gennaio xxviii, Eclesiástico 12, 5)

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Domnas aurellas, tort n'aves


Henry Wace (1836-1924), em seu clássico Dictionary of Christian Biography and Literature to the End of the Sixth Century A.D, with an Account of the Principal Sects and Heresies, anota os tropos tradicionais da biografia de São João Crisóstomo (347-407), inclusive a falta de informação precisa sobre a origem de seu magnífico apodo - boca de ouro, a admiração de seu mestre de retórica, Libânio, o confidente do Imperador Juliano, e as dúvidas morais de que padecia no exercício da profissão de advogado – defender como certo o que era errado e ser pago por isso.

Ironicamente, seu sucesso nas cortes de justiça terminou provocando uma séria crise de consciência e sua conversão ao cristianismo aos 23 anos de idade. Mesmo no caminho da santidade, porém, os hábitos de brilhante advogado não abandonaram João de uma hora para outra. Sem disposição para abandonar sua querida mãe, praticava o ascetismo sem deixar sua casa em favor de um mosteiro e não se furtou a uma desculpa moralmente duvidosa para justificar o artifício usado para fazer de seu amigo Basílio o bispo de Antioquia.

Apenas em 374 deixaria a vida civil para a austeridade solitária do monasticismo oriental. Logo em 381, contudo, Crisóstomo retorna a Antioquia para uma rápida e brilhante eclesiástica, muito ajudada, certamente, pelo seu papel decisivo em evitar uma punição rigorosa do Imperador Teodósio por conta do motim causado por uma demanda de impostos. Em 397, o Imperador Arcádio, impressionado pelas homilias de Crisóstomo, evitou os candidatos da capital e fez do orador o bispo de Constantinopla.

Na condução de seu apostolado, Crisóstomo decidiu seguir o espírito prático e direto de suas prédicas. Dispensou a pompa do cargo, obrigou os sacerdotes a oferecer serviços religiosos noturnos, ocupou-se dos pobres e dos desvalidos. Do púlpito verberava com brilho e entusiasmo os excessos e a luxúria da nobreza da capital do Império.

Por um tempo, as façanhas do bispo de Constantinopla impressionaram a Imperatriz Eudóxia, mas seu zelo e suas homilias logo passaram a irritá-la. Uma confusa sequência de cabalas – confusa pela necessidade de evitar a fúria da plebe da capital – levou à decretação de seu exílio em Hieron, na boca do Euxino. Um terremoto ocorrido na mesma noite de sua partida provoca, contudo, o temor e o remorso de Eudóxia, que obtém de seu marido o retorno triunfal de Crisóstomo.

As reviravoltas do destino não aumentaram a prudência do bispo de Constantinopla. Na descrição de Wace: “Em dois meses, circunstâncias emergiram provando a irrealidade da amizade e despertaram uma disputa ainda mais incociliável. Eudóxia aspirava a honras semi-divinas. Uma coluna de pórfiro foi erguida no fórum menor, diante da Igreja de Santa Sofia, trazendo no seu topo uma estátua de prata da Imperatriz, para a adoração do povo. Sua inauguração, em setembro de 403, foi acompanhada por licenciosos e barulhentos festejos. O ruído do descabido divertimento chegou à Igreja e perturbou o ofício divino. A santa indignação de Crisóstomo inflamou-se e ele subiu ao púlpito para trovejar uma homilia, unindo em suas invectivas todos os que partilhavam de divertimentos profanos e, sobretudo, aquela arrogante mulher cuja ambição estava na sua origem. “Herodias (assim foi dito a Eudóxia) está novamente enlouquecida; Herodias novamente está dançando; mais uma vez Herodias quer a cabeça de João em uma bandeja”.

João Crisóstomo cometeu um erro comum em pessoas inteligentes: usou seu brilho e seu gênio para tripudiar sobre um adversário. No caso, uma mulher poderosa. Eudóxia, enfurecida, retomou as cabalas, novamente confusas e violentas. Apenas em 405, após uma série de sínodos, deposições e motins, o Imperador Arcádio determinou seu exílio, dessa vez nas fronteiras do império, em Cucusus, na fronteira da Cilícia com a Armênia Inferior.

Curiosamente, Crisóstomo resiste aos rigores do clima, aos bárbaros da Isáuria e torna-se o centro das atenções de todo império. Eudóxia falece, mas seus inimigos obtém do Imperador sua transferência para uma cidade ainda mais inclemente, Pytus, ao pé do Cáucaso. A viagem, em condições deliberadamente brutais, termina provocando sua morte em 407, em Comona, aos 60 anos de idade.

Termina Wace: “It is not surprising that he was thought morose and ungenial and was unpopular with the upper classes. His strength of will, manly independence, and dauntless courage were united with an inflexibility of purpose, a want of consideration for the weaknesses of others, and an impatience at their inability to accept his high standard, which rendered him harsh and unconciliatory. Intolerant of evil in himself, he had little tolerance for it in other men. His feebleness of stomach produced an irritability of temper, which sometimes led to violent outbursts of anger. He was accused of being arrogant and passionate. He was easily offended and too ready to credit evil of those whom he disliked. Not mixing with the world himself, he was too dependent on the reports of his friends, who, as in the case of Serapion, sometimes abused his confidence to their own purposes. But however austere and reserved to the worldly and luxurious, he was ever loving and genial to his chosen associates. In their company his natural playfulness and amiability was shewn, and perhaps few ever exercised a more powerful influence over the hearts and affections of the holiest and most exalted natures. His character is well summed up by Dr. Newman—"a bright, cheerful, gentle soul," his unrivalled charm "lying in his singleness of purpose, his fixed grasp of his aim, his noble earnestness; he was indeed a man to make both friends and enemies, to inspire affection and kindle resentment; but his friends loved him with a love 'stronger' than 'death,' and his enemies hated him with a hatred more burning than 'hell,' and it was well to be so hated, if he was so beloved."


(Imagem: mulher beija o crânio de São João Crisóstomo em uma Igreja Ortodoxa dedicada ao santo em Lakatamia, um subúrbio de Nicosia, Chipre, 13 de novembro de 2007.)

Nota: os restos de São João Crisóstomo foram trazidos a Constantinopla em 438, no reinado de Teodósio II. Roubados pelos cruzados que saquearam Constantinopla em 1204, foram levados a Roma. João Paulo II devolveu as relíquias à Igreja Ortodoxa em novembro de 2004 e eles são hoje mantidos no Monte Athos. Sua língua está calada, mas sua cabeça continua produzindo milagres.

domingo, 5 de julho de 2009

quonian ipis Deum videbunt

Considera in qual dottrina finalmente si gloriano quei mondani, i quali costituiscono la loro beatitudine nelle ricchezze, ne' piaceri, negli onori. Em uma doutrina diretamente contrária à verdade, que é a quanto se diz, uma doutrina bugiarda. Cristo disse: Bem aventurados os pobres. Cristo é a verdade, engana-se o Mundo. Persuade-te desta verdade. Considera que essa doutrina do Mundo se há de chamar-se sabedoria, é sabedoria terrena, animalesca, diabólica: bens, prazeres, honras. Lúcifer, diz Jó, é Rei sobre todos os filhos da soberba. Nenhum outro fim há senão Deus. Toda aquela sabedoria é mendax, bugiarda, mendaz. Promete fazer beato o rico de posses, de prazeres que só tocam o corpo, o rico de honras, grandezas e glórias; coisas falazes que não vêm de Deus.

Considera, por contrário, a sabedoria que vem de Cristo, que destaca o homem dos bens, dos prazeres, das honras. Considera a felicidade que exibem os Santos. Que a sabedoria mundana pode ser adquirida com o estudo, faculdade que cada um sempre traz consigo, corrompida logo ao nascer. Que a verdadeira sabedoria vem apenas de Cristo, não fundada na natureza corrupta, mas na reparação da natureza. É uma sabedoria sublime e espiritual. Vede a resolução segura, que se há de fazer: o generoso repúdio da sabedoria do Mundo. Que se desejas encontrar quem a grande maravilha a confunda para ti, tem grande amor a São João Crisóstomo. Quem entre os Santos há melhor refutado em todas e três formas onde é refutável: melhor refutada com a pena, com a palavra, com as obras?

(gennaio xxvii, Tiago 3, 13)

vos don uei Dieus et autras oras


O excurso retório de Paolo, construído sobre uma passagem conhecida dos Provérbios, o caminho dos ímpios é como a escuridão: nem conhecem aquilo em que tropeçam, aponta em várias direções proveitosas. Uma rápida referência em seu texto permite notar, por exemplo, quão antiga é certa resposta blasfema à ameaça do inferno. A observação de que "ao menos vou em boa companhia" segue viva hoje como há trezentos anos, retirando graça das insossas descrições da beatitude. O orador se vê obrigado a insistir nos escorpiões e serpentes da condenação eterna.

O uso de aforismas bíblicos, como o sutil provérbio sobre a escuridão, também é menos convencional do que parece à primeira vista. O ato de enfeixar o pensamento em fórmulas curtas e variadas vem sendo celebrado há tempos, em algumas comunidades acadêmicas, como prova da excelência doutrinária de certo filósofos germânicos. O uso de mensagens diretas e emocionais também é um recurso fundamental da propaganda política contemporânea.

Pesquisas analisadas por Greg Markus em The Sentimental Citizen mostram que esperar uma reação racional do eleitor moderno é um esforço heróico. A decisão de votar - com todas as suas implicações - é fundamentalmente emocional, deflagrada quase sempre por dois sentimentos: medo e entusiasmo. Medo, por exemplo, de um risco social e econômico associado a um candidato ou a um partido. Entusiasmo, por sua vez, por participar de uma empresa patriótica, liderada também por um candidato ou um partido. O Partido Republicano conquistou os eleitores necessários para a folgada vitória em 2004 por meio da mobilização dos medos ancestrais provocados pela proposta de casamento homossexual. Pessoas que jamais votaram, que jamais deram atenção à política e que jamais foram republicanas decidiram se registrar para derrotar uma ameça expressa em linguagem bíblica. Nas eleições de 2008, o apelo emocional constitui parte decisiva da campanha de Barack Obama: contribuir com seu voto para a mudança secular representada pela eleição de um político negro. Muitos eleitores norte-americanos foram votar, na verdade, na eleição de Abraham Lincoln.

As serpentes, os escorpiões e as feras infernais criam ao menos uma dúvida no coração de blasfemos contumazes; produzem uma imagem, uma emoção.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

quaerent intrare, et non poterunt

Considera, che per via degli empj s'intende quella forma di viver, ch'essi tengono. Vivem cheios de trevas, de imprudência, de ignorância, de erros. Se tua mente está tomada por esses axiomas, recorre ao Senhor e pedo iluminação. Considera que as mais perigosas quedas são as que ocorrem no escuro. Não sabem os pecadores onde correm, mas onde caem. Não é apenas a culpa, mas a danação. Considera que muitos dizem mesmo querer danar-se. Se vou ao Inferno, não o farei sozinho: estultos! Vede se estão em trevas. Não haverão coragem de confinar-se em um claustro de certosinis ou de capuchinhos, mesmo não estando sozinhos, mas tendo a companhia dos Anjos, e não teme ir ao báratro de vivo fogo, de escorpiões, de serpentes. Se então tiverem companhia, tanto pior. O che conforto rabbioso! Será outra coisa, que haverás tantas mais feras, tantas mais fúrias, que acrescentem seu horror? Ah ben si vede, che non capiscono niente, Nesciunt ubi corruant.

(gennaio xxvi, Provérbios 4, 19)

Oimais pense, quis vol, d'Amours


Não é incomum considerar a vida e a doutrina de Paulo, o Apóstolo, elementos centrais do Cristianismo histórico. Sem suas cartas e seu apostolado, a lição dos Evangelhos poderia bem permanecer uma obscura heresia judaica, como a definiu certa vez um célebre escrito argentino. Tão poderoso foi seu exemplo, que as artes e a literatura do Ocidente fizeram da conversão de Paulo um foco de análise e meditação permanente. Na verdade, a própria idéia de conversão - religiosa, espiritual, política, intelectual, artística, sexual, etc - atingiu uma dimensão excepcional, que jamais teve na Antiguidade e que segue vívida enquanto essas linhas são escritas. Nesse preciso momento, há alguém no mundo abandonado suas idéias e experiências, para abraçar seu eventual oposto, e proclamando uma nova verdade pelo exemplo pessoal.

A aventura existencial da conversão muito deve aos méritos literários do evangelista Lucas. Quem pode deixar de se impressionar com a narrativa dos violentos atos de Saulo, um assassino cruel de apóstatas judeus, sempre disposto, sempre em ação, atingido em plena viagem a Damasco, no alto de seu cavalo, à frente de tropas, cegado, contestado e interrogado por Jesus Cristo, em pessoa? Quem, depois de ler essa história instigante, não se sente vulnerável a uma aparição que inverta suas próprias crenças e ideais? Quem não espera, secretamente, esse chamado?

Alan Segal, em seu brilhante livro, Paul, the Convert, nota, contudo, que Paulo jamais se estendeu sobre os fatos narrados em Lucas. Jamais repetiu a narrativa dos Atos, sempre usou circunlóquios e enigmas para descrever seus encontros com Jesus. Sempre se diminui, jamais se vangloriou, nem escreveu sobre suas conversas com o Cristo. Não construiu nenhuma teologia baseada em revelações de caráter pessoal. Ao contrário, registrou que seu eventual privilégio como Apóstolo dos Gentios era sempre contrabalançado por vergonhas, infirmidades, espinhos na carne e outras humilhações, assumidas publicamente.

Estudos sociológicos acerca do processo de conversão religiosa mostram que este é um traço importante de autenticidade. O converso considera o momento ou a ocasião da conversão um evento relativamente menor, de escassa relevância diante da missão existencial que está destinado a cumprir. Paolo está corretíssimo na ênfase de sua prédica: o Apóstolo foi escolhido porque era o último dos pecadores, não porque tivesse alguma virtude pessoal. Era um violento, brutal, iracundo pecador. Manteve a intacta consciência dessa realidade após o encontro com Jesus e foi anunciar a salvação para o resto da Humanidade. Considera, recomenda Paolo Segneri.