domingo, 31 de maio de 2009

car non recep nulla mestura

Ouvi da voz de um professor de ética empresarial as incomuns vantagens da disciplina: por mais que se rode, haverá, no fundo, apenas duas lições a ensinar: a ética da responsabilidade e a ética da utilidade. Em um mundo secular, pode-se apenas examinar as ações ao alcance do indivíduo. Maximizamos nossa utilidade, sujeitos a variados limites; ou praticamos alguma versão do imperativo categórico. Pesquisas recentes mostram, inclusive, que uma ética baseada na teoria da evolução tende para essa última. São sujeitos a consideração os fatos que estão ao alcance do nosso arbítrio. Essa férrea circunstância, intelectual e real, não deve nos cegar para um fato, evidente aos meus olhos: parte considerável de nossa circunstância, com que nos confrontamos em nossas escolhas pessoais, é produzida pelo mero acaso.

Pesquisas após pesquisas mostram, por exemplo, como a beleza física representa um ativo social relevante, capaz de gerar substanciais incrementos de renda (e, portanto, de perspectivas de vida, de bem estar físico, longevidade, etc.). Uma pessoa bela pode ser muito beneficiada socialmente sem jamais exigir tal coisa. Aplicar a ética da responsabilidade ou ética da utilidade a ativos positivos e negativos dessa natureza é uma atividade problemática: como julgar o uso da beleza por alguém quando esse uso depende das ações de terceiros? Alguém é culpado por ser milionário, como defendiam os filósofos socialistas?

Na prática, muitas variáveis atribuíveis ao contexto social padecem desse mesmo efeito do acaso: um vasto pacote de bens posicionais não são produto de nosso trabalho físico ou intelectual, de nossas decisões individuais. Como é possível analisar nosso julgamento sobre tais variáveis? Não é notável que o prêmio de loteria (o sorteio da desigualdade) preceda por vários séculos a teoria da justiça rawlsiana e a renda mínima (o sorteio da igualdade)?

A idéia de sorteio nos é profundamente repugnante, mas essa repugnância não muda o fato de que a maior parte de nossa circunstância seja fruto de sorteios. Não fizemos nada para merecer nosso rosto, nossa família, várias de nossas habilidades, nosso momento na História.

A religião não teme, diante desse desafio, de classificar tais vantagens como dons de Deus. Ao menos é uma forma de submeter um extenso conjunto de vantagens existenciais ao menos a um dever de gratidão. Uma alternativa, como nota Paolo, é a "loucura dos felizes": recusar deliberadamente a Deus.

et interrogabat discipulos suos

Considera o brutto termine, che giornalmente usano tanti con Dio. Quand'è che non vogliano saper più niente di lui, che lo sdeganano! che lo sprezzano! che gli giungono a dire: recede a me, como está em Jó 22, 17. Assim fazem os mais potentes, os mais facultosos, os mais floridos, robustos, os que mais cometem pecados. E Deus, ainda assim, até eles vai e por isso precisam dizer recede a nobis. Por mais que faças, escreve Paolo, Deus não é o primeiro a partir. É preciso ordenar, recede. Chama de "loucura dos felizes", indagar "o que o Todo Poderoso nos fez?". Ora, ele enchera de bens as suas casas (22,18), como anota Elifaz, o temanita. Muito se faz quando há bens a receber, se professa ao menos algum forte obséquio. Allor si cessa, quando la Casa à già piena.

(gennaio x).

sábado, 30 de maio de 2009

ma domna es e fons e rosa

Por mera coincidência recebi há poucos dias a referência ao artigo de David Eagleman, pesquisador do departamente de neurobiologia e anatomia da Universidade do Texas, por meio da newsletter do EDGE (n. 287). O resumo era simples: não é mais possível imaginar o tempo como um rio fluindo de modo uniforme. A percepção do tempo, como a visão, é uma construção do cérebro e, portanto, de fácil manipulação. Uma versão antiga do paper, publicado pelo Journal of Neuroscience, em novembro de 2005, já enumerava as pesquisas revelando as variadas regiões do cérebro responsáveis pela construção mental do tempo. O tempo mental não tem uma métrica fixa, obedece a vários padrões. Se prestamos atenção em um processo, ele é registrado como lento; se não, não. Os modelos de "relógio interno" precisam ser adaptados aos fatos que mostram um processamento variado de padrões temporais. Períodos longos de tempo são estimados em base ainda mais imprecisas. O significa, concretamente, para cada um a expressão "os próximos dez anos"? Qual a valência emocional associada a esse termo?

É fácil concluir que essa percepção subjetiva do tempo, sustentada agora pela neurociência, presta-se a todo tipo de manipulação mental e moral. Nos sonhos, algumas horas podem equivaler a dias; alucinações têm o mesmo efeito. Por outro lado, o cálculo do tempo tem evidentes implicações morais: sendo um recurso escasso, seu uso é sujeito a prioridades e escolhas éticas. Qual o melhor uso para o seu próximo minuto? Qual a regra para o emprego do seu tempo, considerado em toda a sua extensão útil? E fala-se aqui em termos práticos, sem recurso à poesia do "o que faria se fosse morrer amanhã?" Essa interrogação, pelo prazo curto que se impõe, reduz brutalmente o número de alternativas realistas.

A reflexão de Paolo, notável em si mesma, na proposição de um cenário virtual, amplia o sentido desse cálculo pelo uso de duas imortalidades diferentes - a das pessoas que viverão para sempre na Terra e a das pessoas que viverão para sempre, mas no céu, depois de passar pela morte. Um exame mais detido de sua conclusão, contudo, revelaria vários problemas.

Se vamos viver pouco, talvez seja racional, sendo nossos fins terrenos, afanar-nos na busca material e gozarmos de seus bens o mais rápido possível. Se vamos viver sempre na Terra, essa busca material certamente não obedecerá ao mesmo ritmo seguido pelos que vão morrer. Se vamos viver para sempre, por exemplo, nosso potencial de poupança é infinito.

Talvez Paolo tenha criado um paradoxo ainda mais fascinante. Se vamos viver para sempre, fazer poupança ou enriquecer, torna-se vagamente irracional. Poupança para usar em que tempo? Riqueza para gastar em que tempo? Se vamos viver para sempre, precisaríamos acumular riquezas infinitas para que pudéssemos gozar dessas riquezas infinitamente. Se não vamos viver para sempre, trabalhar muito, enriquecer, ganha algum sentido, pois nossa vida é limitada. Podemos trabalhar muito dos 20 aos 60 anos para viver bem dos 60 até a morte. Esse cálculo é impossível para os imortais invocados por Paolo.

Há uma saída cristã: enriquecer é pecaminoso. Quem vai morrer não deve lutar por isso, pois está se condenando à perda do Céu. Quem não vai morrer, não teme a condenação.

Penso, nesse momento, contudo, que os homens imortais de Paulo teriam tantos motivos de rir dos homens que vão morrer, como estes daqueles. Seus imortais estão condenados à pena de Sísifo, a repetir eternamente um ciclo de enriquecer, consumir, enriquecer, etc. Como os homens que não podem morrer da história de Jonathan Swift, vivem uma estranha vida.

sexta-feira, 29 de maio de 2009

et rogaverunt eum ut signum de caelo

Considera, che non v'è cosa ò più vile, ò più vana, ò più instabile d'un vapore, il quale è soggeto ad ogni aura. E tale è la vita umana. Vapor esti. Singelos e concretos os perigos da vida: uma sufocação de catarro, um só animal pestífero. E ele pergunta: como podes te reputar eterno? Compara o homem ao vapor que sobe ao Sol. Hoje em figura, cortejado de todos, amado, adorado; dimani sarai pascolo a i vermini in sepoltura. Considera que loucura é, portanto, a tua se tanto te fadigas por uma vida a que tanto falta. Nesse ponto, Paolo avança além da mera metáfora do Eclesiastes. Propõe uma comparação virtual, um experimento com o cálculo de utilidades: Imagina que duas sortes de pessoas existam na Terra. Umas que morram como nós, após poucos anos; outras que não morram nunca. Ó como estas, vendo aquele afanar-se em plantar, em fabricar, em traficar, em entesourar, se ririam da sua estultice. Deixai, diriam, a nós fazer tais coisas, que estaremos na terra para sempre. Vós, contentai-vos com o que basta a uma vida e preparai-vos para a morte. Em verdade, não menos dignos de riso somos nós hoje: pois que sendo todos mortais, assim partilhamos todos indiferentes da universal estultice, que cometemos. Brilhante.

(gennaio ix, Tiago 4, 14)

sa vines, ma douza piuzella

A invectiva de Paolo contra a resistência das famílias que se recusavam a permitir que seus "melhores filhos" se dedicassem à vocação religiosa, soa curiosa e familiar. Curiosa porque as famílias nobres italianas faziam questão de dedicar ao menos um dos filhos homens à carreira eclesiástica por motivos nada nobres, prática não incomum em outros países latinos, inclusive o Brasil. Familiar porque o assunto é debatido pela Igreja Católica ainda hoje. Alguns números podem iluminar o efeito e a intenção da advertência algo ameaçadora de Paolo.

A Universidade de Georgetown mantém um Centro para a Pesquisa Aplicada do Apostolado (CARA), responsável pela publicação de análises e estatísticas sobre o catolicismo nos Estados Unidos e em outros países desde 1995. Poucos dados bastam para qualificar visões correntes. O número de padres, frades e irmãs nos Estados Unidos, por exemplo, não sofrem um declínio secular, mas um ciclo. Em 1945, havia 12.413 padres; o número subiu para 21.781 em 1965 e permaneceu nesse patamar até 1985 (20.448). A queda está concentrada entre 1985 e 2000, quando o número de padres caiu para 15.143. O pico e a queda, contudo, são muito mais visíveis entre as mulheres religiosas: o número de irmãs passa de 122 mil em 1945 a quase 174 mil em 1965, mas desde então a queda é contínua, até chegar a pouco menos de 80 mil no ano 2000. É natural constatar que entre 1945 e 1985 a condição de padre não era problemática para homens, mas se tornou para o caso das mulheres. Note-se, contudo, que apesar da queda, o número de irmãs é muito maior do que o de frades ou padres.

Aliás, a queda no número de padres nos Estados Unidos é sensivelmente menor do que a queda nas profissões contemplativas. Esses números explicam facilmente a pressão para o ordenamento de mulheres. O exercício do ministério continua sendo atrativo para pessoas com vocação religiosa. Outro fato notável: a queda no número de matrículas em seminários é profunda entre 1965 e 1980, mas muito menos significativa desde então. Entre 1990 e 2000, há praticamente estabilidade.

Por fim, o relatório CARA não apresenta as datas dessa pesquisa de opinião, mas, supondo-a do início do século XXI, é supreendente notar que 17% dos homens católicos já consideraram seguir uma vocação religiosa, assim como 15% das mulheres. Nada menos que 10% encorajaram um vocação religiosa e 32% encorajariam seus filhos a uma carreira religiosa. Para o conjunto demográfico que soma mais de 60 milhões de americanos, são percentuais relevantes.

O protesto de Paolo pode ser entendido muito mais facilmente como um aspecto pragmático da atividade apostólica: as vocações estão lá, precisam ser despertadas e as famílias conquistadas.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

locutus est ad turbas

Considera chi sia questo inganatore qui maledetto. E chia lascia un ben maschio, qual è quello, que lhe requer a sua constituição, o seu cargo, o seu diretor, para oferecer um débil, que é aquele, que lhe vem em capricho. E, no entanto, oh! quantos são assim, que assim fazem! A meditação é sobre que se oferece a Deus, o sacrifício voluntário e o votivo, do Religioso e do Secular e a ameaça de Malaquias 1, 14, a quem tendo animal bom em seu rebanho, oferece coisa vil. Paolo ia falando dos votos, da responsabilidade particular dos Religiosos, mas termina com um notável comentário sobre o comportamento das famílias no momento de dedicar seus filhos ao serviço de Deus: sacrificariam a Deus aquela moça, que se sente chamada ao claustro, immolant debile Domino. Mas não querem sacrificar aquele macho, se não quando esse mesmo é defeituoso, estropiado, estólido, seja pouco apto a levar adiante a Casa. Quando é apto, o querem reter para si. Oh che brutto termine è questo a un Signore si grande! Rex magnus ego, dicit Dominus Exercituum.

(gennaio viii).

ben leu non sai de ja

O problema representando por um limite desconhecido que pode ou não ser alcançado por um processo cumulativo é pervasivo na experiência humana. Paolo mostra abaixo que não importa quão quotidiano e permanente o seu temor de Deus - há apenas a esperança. É certo, porém, que sem esse temor, a condenação é quase certa. É o mesmo problema clássico da ciência política: o voto. A contribuição individual é irrelevante - não deveríamos votar. Por várias décadas, foi chamado paradoxo do voto, posto que a premissa individualista parecia incontornável e, no entanto, a imensa maioria dos eleitores vota ou julga votar relevante em suas vidas. Deus pode fazer exigências insólitas, mas a crença na salvação não parece abalada. Ano passado, Richard Tuck, professor de governo em Harvard, ofereceu uma razoável tahafut do paradoxo. Um bom trecho:

"Esse último ponto deveria, talvez, ser ressaltado, uma vez que é desconsiderado: a questão chave para Olson é que independentemente do que as outras pessoas contribuam, não temos razão de fazê-lo. Em minha interpretação não é assim. Ou pomos em operação uma coordenação exata, sabemos que somos confrontados com um patamar, ou somos forçados a operar uma coordenação menos exata, sabendo que, portanto, cada um de nós tem uma oportunidade razoável de contribuir para o resultado desejado. De qualquer modo, se há contribuidores suficientes, temos uma razão para contribuir; e dado que temos conhecimento prévio de que este será o caso, todos temos uma razão para construir uma convenção, para que são sejamos tentados à defecção." (Richard Tuck, Free Riding, 2008, pág 62).

Nesse contexto, a reflexão de Paolo é rigorosa ao extremo. A questão não é descobrir a soma limite da cumulatividade, mas a crença fervorosa no limite, crença necessária porque sempre nos será desconhecido. Paolo é feliz, inclusive, na sua nomenclatura, perfeitamente referenciável aos atores do paradoxo do voto. Os "celerados" jamais terão segurança devido às suas próprias estratégias; os "santos" seguem firmes na esperança porque, afinal, crêem.

quarta-feira, 27 de maio de 2009

et restituta est manus eius

Considera il frutto grande che seco reca il santo timor divino: haver fiducia alla morte in novissimo; questa à la regola della sperienza. E compara o comportamento dos que pecaram na vida, em desespero na invocação da misericórdia divina na hora derradeira, com os mais temorosos em consciência, ainda assim com ânimo incerto. Não basta um temor ordinário; é preciso que o temor seja como o Mar, onde esteja submerso da manhã à noite. Aqui ele opera o mesmo dispositivo de uma narrativa zen ou de uma parábola tcheca: exalta uma ação que precisa ser conduzida com último e renovado rigor, porque assim foi ordenado, para produzir um efeito de que nunca se estará seguro, mas que sem tal ação jamais seria obtido. A partir de qual quantidade de fé se está salvo? Paolo diz: e terá esperança, não segurança; porque nem mesmo tal temor pode dar segurança. Poderão, indaga, os celerados ter segurança, se os Santos não terão mais que esperança?

(gennaio vii, Provérbios 23, 18).

bem fora melz esclava fos

A emoção da esmola é reprimida no Brasil há quase um século, desde o momento em que o governo assumiu a responsabilidade pelas caixas de asssistência. A caridade medieval, em suas múltiplas formas, perdeu sua base moral e mutual para o Estado de bem estar. Hoje a caridade é parte da política fiscal: as isenções amparam desde as decisões individuais de dar até a atividade organizada das Igrejas. Há propaganda governamental na televisão recomendando não dar esmola. Os pobres estão obrigados a ser indivíduos. Os governos podem dar esmola, mas de forma anônima e universal. Governantes, no Brasil, não podem dar esmolas: são consideradas abuso do poder econômico em cortes eleitorais. Há um projeto de lei, por esses dias, no Congresso, eximindo de dolo os doadores de alimentos que, eventualmente, causarem problemas de saúde. A existência da esmola tem implicações políticas intoleráveis e mesmo a Igreja trabalha hoje para intermediar a relação pessaol entre quem doa e quem recebe.

Essa notável conquista ideológica torna ainda mais chocante as palavras de Paolo sobre o menino pobre que encontrou em uma peregrinação a Loretto(http://paolosegneri.blogspot.com/2009/05/sinite-parvulos-venire-ad-me.html). A idéia de que o eventual doador, o esmoler, uma palavra hoje morta, prefere o pobre que se adianta a pedir; a idéia de que esse mútuo sentimento - mover-se a pedir de forma graciosa, dar a quem lhe pediu pessoalmente - seja meritório e benigno; seriam quase escandalosas aos olhos modernos. O ato de pedir (um pedir real) está cercado de tal pudor, de tal protocolo, que se tornou quase proibido, coisa de quem não se respeita. Mesmo os pais têm obrigação de dar coisas aos filhos.

A reflexão de Paolo, contudo, vai muito além de confrontar suas emoções barrocas e nossa sensibilidade moderna. Sugere que essa relação entre esmoler e o pobre é a mesma entre Deus e o fiel. Ousa compreender o amor de Deus - é o esmoler riquíssimo, generoso, que, por nos amar, quer ouvir nossa voz, quer sentir nossa aproximação, pedindo. Tanto melhor se pedindo as coisas que são de Deus e não os bens da Terra, que qualquer monarca secular pode conceder. Difícil comentar essa reflexão, necessario é meditar sobre ela.

Parecerá talvez menos escandalosa se anotarmos o fato de que cem anos de repressão política e simbólica da esmola não fizeram desaparecer essa emoção. Campanhas de doação de agasalhos se repetem, criou-se mesmo um novo nome - solidariedade - para o atendimento individual, personalizado, das carências humans. Talvez o Estado não seja tão eficiente assim no atendimento aos pobres, talvez a miséria humana seja individual demais para ser atendida em uma escala administrativa ou talvez exista mesmo a emoção de dar. A mesma que leva voluntários ingleses a incomodar mais de uma vez, levando refeições no curso de uma noite fria, ao mesmo homeless. Considera, portanto, como recomenda Paolo.

terça-feira, 26 de maio de 2009

quam petit val encontr'amor


"Cest innocent mettant son coeur à Dieu,
N’a nul souci de toute autre richesse:
En luy aussi presomption n’a lieu:
Car haut au ciel est toute sa liesse.
Plusieurs icy errent par leur rudesse,
Prenans les sots pour les povres d’esprit.
Sage est celuy qui renonce & qui laisse
Le monde & soy, pour estre riche en Christ."

(Emblema Beati pauperes, Georgette de Montenay, Emblemes ou Devises Chretiennes, 1571)

sinite parvulos venire ad me

Considera quanto conforto ti devono arrecare queste parole: Il Signore à Signore eguale di tutti; Idem Dominus omnium, chiama tutti, abbracia tutti, si mostra al pari amorevole verso tutti. Pode-se, portanto, estar a seus pés sem temor, porque os reis do mundo lá também estarão; e Ele, pobre, em sua mangedoura. Paolo pede para considerar como Deus é rico; como, sendo rico, não é avaro como os ricos da Terra. Nesse ponto, uma surpresa - o texto muda de trajeto porque Paolo quer agora falar das condições, dos motivos de Deus: il Silgnore è liberalissimo, ma tuttavia sempre vuole una condizione: vuol essere ricercato. Quer mandar a esmola, a graça, mas quer que ela seja pedida. Por que? Porque ama, quer que você se aproxime, quer você peça a graça. Paolo, então, redobra supresa, torna-se confessional, começa a falar de si mesmo, do encontro com os pobres na peregrinação a Loretto: Se incontri un figliuoletto vivo di spirito, il quale a te presenti per la limosina, gliela dai, ma prima godí di fartelo vir dietro. Cosi fa Dio; vuole um poco goder di te. Quer gozar de sua presença. Há que pedir, como está no trecho de Romanos 10, 12, citado. Porque a boa demanda não é pelas coisas que não são Deus, mas pela presença de Deus, que lhe dará em segredo. Como você dá em segredo a quem lhe pede. Você é o mendicante diante de Deus, sempre liberalíssimo, em nada espantado com sua miséria. Quanto maior sua miséria - no sentido amplo da palavra, mais direito tem de apresentar-se. (gennaio vi, Romanos 10, 12).

segunda-feira, 25 de maio de 2009

le reis de paradis vos salve, bel segner

Na academia que havia em Roma e no palácio da Sereníssima Rainha da Suécia, Cristina, se propôs um problema no ano de 1674, cujo argumento foi esse: se o mundo era mais digno de riso ou de lágrima e qual dos dois gentios andara mais prudente, se Demócrito, que ria sempre; ou Heráclito, que sempre chorava. Vieira escolheu defender Heráclito; Jerônimo Cataneo, a Demócrito.

O primeiro argumento de Vieira tenta salvar o riso; quer mostrar que o riso de Demócrito era uma suma expressão de dor diante das desventuras humanas, lamentadas antes por serem fruto da ignorância do que por serem reais. Isso seria negar realidade ao mal, Vieira sabe do perigo desse caminho. O segundo argumento, postulando real o riso, mostra que esse é apenas justo se exercido sobre as ficções da Comédia, sobre as falsas dores vividas no palco. "Porque aqueles defeitos são supostos e não verdadeiros; que se fossem verdadeiros, seriam motivo de comiseração e não de riso; e como os defeitos e vícios de que ria Demócrito eram verdeiros defeitos e verdadeiros vícios, não tinha seu riso motivo algum (...) porque quem chora lastima; e quem ri, despreza; e a compaixão concilia amor, o desprezo, ódio e aborrecimento; quem ri, exaspera; quem chora enternece" (Lágrimas de Heráclito, 1674).

Não se deve rir dos males como estratégia de distanciamento emocional. Primeiro porque os males são reais, não são meras ilusões; segundo, porque, fora da licença da ficção, da arte, o riso é desprezo: "O mais aprenderá depois, porque é arte; para o pranto nasce já ensinado, porque é natureza. Esta é a sentença irrefragável da natureza e esta a natureza dos mortais: é o homem risível, mas nascido para chorar; porque se a primeira propriedade do racional é o risível, o exercício próprio do mesmo racional e o uso da razão é o pranto". (Idem).

Penso sempre nos fatos que sustentaram a extrema consciência da seriedade da existência, o luto barroco, a ponderación misteriosa; muito similares, penso eu, à estranha seriedade das ditaduras totalitárias do século XX. O mesmo impulso militante, a mesma certeza de viver em um mundo corrupto e maléfico, que só merece as lágrimas e que pode ser salvo apenas por um regime tirânico. Onde o riso sobrevive como uma diversão controlada.

A presença do mal nunca foi mais evidente do que no século XX, mas essa visão militante do mundo definhou gradativamente, mesmo como parte da retórica da religião, mesmo sendo muito mais verossímil, como sentimento humano, do que o riso agressivo do monge taoísta diante da dor humana. Talvez o mal, no século XX, tenha assumido tais proporções que um luto barroco tornou-se inviável, insuportável. Nesse sentido, os dias de Paolo Segneri e de Antônio Vieira podem ter sido bem mais amenos, houve mais necessidade de reprimir o riso de Demócrito.

Paolo (http://paolosegneri.blogspot.com/2009/05/qui-ridentis-nunc.html), por sinal, vai mais longe: se não é justo o riso diante da realidade do mal, Deus vigia. Você poderá prestar conta do riso que riu.

Wer sich selbst erhöhet, der soll erniedriget werden



Rembrandt. Paisagem com bom samaritano. 1638.

"Der Mensch ist Kot, Staub, Asch und Erde;
Ist's möglich, dass vom Übermut,
Als einer Teufelsbrut,
Er noch bezaubert werde ?
Ach Jesus, Gottes Sohn,
Der Schöpfer aller Dinge,
Ward unsretwegen niedrig und geringe,
Er duldte Schmach und Hohn;
Und du, du armer Wurm, suchst dich zu brüsten?
Gehört sich das vor einen Christen?
Geh, schäme dich, du stolze Kreatur,
Tu Buß und folge Christi Spur;
Wirf dich vor Gott im Geiste gläubig nieder!
Zu seiner Zeit erhöht er dich auch wieder."

(BWV 47. Música de J.S. Bach, poema de Johann Friedrich Helbig, 1726)

"O Homem é Lama, Imundice, Cinza e Terra;
É então possível, por arrogância,
Como fosse da Ninhada do Diabo,
Que se mostre convencido?
Ai, Jesus, Filho de Deus,
O Criador do Céu e da Terra
Por nós se abaixou e humilhou
Suportou Escárnio e Desprezo;
E tu, fraco Verme, procura ufanar-se?
Ouve-se tal coisa de um Cristão?
Vá, envergonha-te, tu criatura soberba,
Penitencia-te e segue a Trilha de Jesus;
Lança-te diante de Deus em Espírito crente e humilde!
No seu Tempo ele te ouvirá ainda uma vez."

deposuit potentes de sede

considera chi sono coloro, a i quali noi sogliamo far resistenza. Sono quelli, che ci vogliono togliere in nostro. Quando uno ingiustamente ci vuole toglier la vita, ò toglier la reputazione, ò toglier la roba, allora à quanto mais resistiamo. Por isso se diz que o Senhor resiste aos soberbos. Mas por que então tomar como seu, o que é dom do Deus. Esse é o trabalho da soberba, tomar a si o que é de Deus. Para fazer com o que arroga ser seu, o soberbo escolhe um inimigo poderoso. Outro é o trabalho do humilde, que nada quer para si. Por isso, Deus há de muito lhe conceder - é depositário fiel do alheio. Adunque con questa viva fiducia svegliata in te, va generoso ad investire le difficoltà, che ti vogliono spaventare, con sicurezza, che da te non puoi vincerle, ma cho nondimeno le vincerai, perchè hai teco l'Omnipotente. "dá, porém, graças aos humildes", como está em Tiago 4, 6. (gennaio, v).

domingo, 24 de maio de 2009

per qu'en doptas?



"De toutes gens est la nature telle
Qu’ils ont le coeur à ce qu’ils aiment mieux,
Dont cestuy-ci dedans une escarcelle
Appartient bien à l’avaricieux.
Or le Chrestien a mis le sien aux cieux:
Car son thresor est là, & tout son bien,
Où le larron, la rouille & l’envieux
N’ont tel pouvoir qu’en ce val terrien"

(Emblema Illic erit cor vestrum, Georgette de Montenay, Devises Chrestiennes (1571).

nihil ergo nunc damnationis est iis

Considera, che tu sei quest'Albero sí famoso, di cui si parla. Se reciso caderai all'Austro, rimarrai all'Austro. O sempre Principe in soglio, ò sempre Schiavo di catena, ò sempre giubilante, ò sempre accorato, ò sempre glorioso, ò sempre imfamissimo. Internati fissamente un tal pensiero. Todos serão julgados onde estão, não importa o que são, serão julgados pelo que sempre foram, como está dito em Eclesiastes 11,3, citado: "Estando as nuvens cheias, derramam a chuva, e caindo a árvore para o sul ou para o norte, no lugar em que cair ali ficará". Olha, portanto, o que sempre faz, onde faz: não poderás compreender quanto alla morte potrà la forza dell'abito, que te haverá, bom ou mal.

(gennaio, iv, Eclesiastes, 11).

"Zedern müssen von den Winden
Oft viel Ungemach empfinden,
Oftmals werden sie verkehrt.
Rat und Tat auf Gott gestellet,
Achtet nicht, was widerbellet,
Denn sein Wort ganz anders lehrt."

(BWV 150. Música de J.S. Bach, poeta desconhecido, 1706).

"Cedros por causa dos ventos
Por vezes infortúnios devem sofrer
Muitas vezes são derrubados.
Conselho e Ação em Deus dispostos
Não consideres o que é contrário
Se sua Palavra toda outra coisa ensina."

sábado, 23 de maio de 2009

Emblema IX

"Le boire & le manger se change & se consomme,
Afin de maintenir la vie au corps de l’homme.
Pourquoy donc, Sage-fol, de nous te mocques tu
Qui de la mort de Christ tirons vie & vertu?"

qui ridentis nunc


... considera quanto giustamente il Signore riprenda tanto quei, ch'ora ridono con maniera eccessiva, dondosi en preda alle vane conversazioni, a canti, a balli, a bagordi, ad impurità, e cercando sempre de starsene allegremente... Economia solene, exposta de forma sombria também pelo Sermão da Quarta Feira de Cinzas, da troca entre os risos no vale de lágrimas pelas lágrimas por não estar no riso eterno. Comparação entre a vida breve e a eterna condenação, o riso momentâneo e o choro eterno, o ato fugidio sobre a Terra, a condenação no Além. Escolha entre Heráclito, que chora, Demócrito, que ri. Sentimento barroco do luto, necessidade de medida na alegria. Deus está olhando o riso, os que riem, pois hão de chorar. Escreve Paolo: Que amargos rios devem aqueles míseros condenados verter de pranto, quando se sentem ora deslocar os osssos, não de outro modo, que se fosse um acúleo, ou arrotear, ou atanazar, ou puxar ou destroçar de outras diversas formas, que podemos alcançar com os nossas palavras, mas não exprimir. Riem porque não imaginam, não são alcançados pelas palavras, pelo temor, pelo luto de viver.

(gennaio iii, Eclesiastes 40).

(Emblema: "Quidqui edis quodcunque bibis, moriatur oportet,Ut inde vita suppetat:Et nos à Christi quòd vitam morte petamus,Philosophe rides impie?". Theodor de Beza, Icones, 1580)

sexta-feira, 22 de maio de 2009

scimus quia verax es


gli altri maestri instruunt è vero, ma non dant intellectum; questo ti dà l'instruzione, e con l'instruzione ti dà nel medesmo tempo l'intelligenza. Considera a honra singular que é ter Deus como professor, ensina e dá a inteligência, mas qual será a distância entre o ensinamento e a inteligência, sendo ambas graças do mesmo Autor? E aprende-se duas coisas, a coisa e o aprender? E também o aprender a aprender? A mente apenas assiste, portanto, o encontro da lição com a inteligência? Ou a coisa ensinada revela, na mente, a inteligência lá deixada? Paradoxo: programa e computador de outra natureza. Se Felipe da Macedênia se dizia bem aventurado por Alexandre ter nascido a tempo de ouvir Aristóteles como professor, mais deveriam os Cristãos que podem ser ensinados a todo e qualquer momento, cercados por todos os lados pelas lições do Mestre da Oração. Ingratissimi Cristiani, che non conoscono qual felicità sia la loro (gennaio, ii; Isaías 44:17).

(Emblema Improbè Deum fatigamus, votis ur nostris serviat. Hadrianus Junius, 1565)

per speculum in aenigmate

... se Epimênides é cretense, se mente, quais são as consequências desse fato, se Russell precisa elaborar uma teoria das classes, se Goedel mostra que Epimênides é cretense, mente e diz que todos os cretenses são mentirosos, a razão não mais se acha. Não sabe, como diz Paolo, se os enganos são falsos porque tem falsidades dentro ou se se são falsos posto que precisamente enganam, sendo enganos corretos. (Não seriam mais enganos?). Tudo isso são ídolos, coisas de madeira, disse o profeta Baruch, cobertos de ouro ou prata, para fascinar a atenção, seduzir, desencaminhar. O sentido é um efeito sobre o olhar, informam certas lógicas. Desvia o olhar, escreve Paolo.

quinta-feira, 21 de maio de 2009

deceptiones falsae, imfamiae falsae, illusiones falsae


... queste da infiniti tengono per saviezze: e però queste, a distinzione dell'altre, si chiamano pazzíe false, cioè pazzie mentitrice. Assim como de fato os maiores enganos se chamam enganos falsos, não porque em si contenham enganos verdadeiros, mas porque o escondem. Não querer portanto voltar seu olhar sobre loucuras tais, afim de que não te seduzam mais. Pois são apenas madeira, cobertos de ouro e de prata, será sabido que são coisas falsas, por todas as nações e todos os reis e será manifesto que não são deuses, mas obras da mão do Homem e que não há Deus em elas (Baruch 6, 50).... (gennaio, 1, considera qual nome del Signore...).

(Emblema Vita mortalium vigilia, Hadrianus Janius, 1565)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

quid est hoc?

... voi, che pigliate in mano questo picolo libro, convien, che fiate contento prima di voler deporlo, conoscerne ancora l'uso... Decerto quem escreve precisa avisar a quem lê do que se trata, o que pode obter do que vai escrito, tanto o y= f(x), sobremodo a palavra de Deus, para cada dia, para cada hora, ocasião - quem lê há de encontrar o que lhe convém. Nem mais, nem menos. Saber apenas o que satisfaz. Posto, aliás, que assim é o Maná: dado na medida certa, com o sabor que cada um sabe encontar. Não se pode acusar o Maná, portanto, ... ó d'insipida, ò d'insoave, quanto un voler accusar sè d'indisposto.

terça-feira, 19 de maio de 2009