domingo, 28 de junho de 2009

A cest mot adormitz si fo

Lendo alguns capítulos da breve introdução de Robert Kane aos problemas do livre arbítrio, A contemporary introduction to free will, editada em Nova York no ano de 2005, voltei a me fascinar com a notável e recorrente ausência da análise do problema da consciência sobre os dilemas religiosos e filosóficos do livre arbítrio. A consideração do determinismo, do compatibilismo e do livre arbítrio sempre parte de um princípio ultra-realista. Como se estivéssemos em um ponto de vista externo e virtual, poderíamos sempre compreender sem ambiguidade se nossas ações são determinadas, completamente livres ou parcialmente livres.

Um behaviorismo radical e a utopia de Walden Two podem eliminar, por definição, qualquer elemento ligado à reflexão interna no julgamento do curso das ações humanas e a pertinência da noção de uma liberdade interior. Entretanto, nos dois casos deixariam então de ser relevantes para a consideração pragmática da existência humana, cuja especificidade é criada justamente pela existência de um domínio interno, capaz de refletir sobre o sentido de nossas ações. É inútil descartar a noção de uma liberdade interior, mesmo considerando-a como uma ilusão: seria preciso explicar qual a natureza e qual a função dessa ilusão. O problema filosófico relevante é criado precisamente pela existência da sensação de liberdade interior, mesmo diante da evidência cabal de que a ordem do Mundo obedece a leis naturais.

A existência de Deus e de um Deus com uma agenda moral positiva acrescenta complexidades conhecidas a esses dilemas. Um deles, equacionado de forma paradoxal por Paolo, sustentado no texto de Oséias é: quando agimos - para o bem, para a salvação, supostamente - quanto de nossa ação é eficiente por nosso mérito e quanto por intervenção divina? É surpreendente notar que sua análise se baseia no decisivo "diferencial de informação" entre o Homem e Deus no que toca às matérias do livre arbítrio.

Nunca saberemos se fizemos o bem: não conhecemos a cadeia cósmica dos eventos para saber se nosso ato nela contará de forma positiva ou negativa. O homem que amparamos hoje pode ser o assassino de amanhã. Alguém ajudou Adolf Hitler em seus dias de miséria e privação; alguém pode ter favorecido corretamente um aluno que ficou com a bolsa de estudos do homem que algunas anos mais tarde descobriria a cura do câncer. O bem que fazemos é um gesto feito na mais completa incerteza sobre seu real impacto na ordem cósmica dos eventos.

Uma definição objetiva do bem, do bem fazer, por outro lado, seria necessariamente farisaica, extensiva apenas ao ato concreto, pequeno, circunscrito à minha pessoa. Só uma coisa poderia salvá-lo como um gesto do bem: a intenção sincera, interna, pessoal. Todos estão a par, contudo, dos paradoxos da intenção, inacessível ao Outro.

A rigor, portanto, apenas a mente insondável de Deus poderia julgar qual o peso exato de nossos atos na ordem cósmica dos eventos. Se nossas obras bastam para nos salvar, a rigor, só Deus pode saber. E também apenas mente insondável de Deus conhece a real intenção de nossas mentes quando agimos. Quanto ao Homem, resta a observação do preceito de Oséias: guarda a beneficência e o juízo e em teu Deus espera sempre.

Esse tipo de incerteza quanto à descrição da realidade - à correta relação entre fatos e representações - é certamente incômodo. Em 1935, o volume 47 do Physical Review, trazia a conhecida nota assinada por Einstein, Podolsky e Rosen, condenando a interpretação corrente da física quântica por insistir na medição de grandezas que poderia, ela mesma, alterar um sistema físico. Diz o texto:

"Em uma teoria completa existe um elemento correspondente a cada elemento da realidade. Uma condição suficiente para a realidade de uma quantidade física é a possibilidade de medi-la com precisão, sem perturbar o sistema. Na mecânica quântica, no caso de duas quantidades físicas descritas por operadores não comutativos, o conhecimento de um impede o conhecimento do outro. Então, ou (1) a descrição da realidade dada pela função de onda da mecânica quântica não é completa ou (2) essas duas quantidades não podem ser reais ao mesmo tempo. A consideração do problema de fazer predições concernentes a um sistema com base em medidas feitas em outro sistema com o qual interagiu previamente leva ao resultado de que se (1) é falso, (2) também é falso. Assim, é-se levado a concluir que a descrição da realidade como oferecida por uma função de onda não é completa."

Nos termos do dilema da salvação ou da mera prática do bem: se tenho completo conhecimento do efeito de meus atos na ordem cósmica dos eventos, minha intenção moral é irrelevante como determinante de minhas ações. Posso ter escolhido ser bom pelo mais negro egoísmo pessoal: sei antecipadamente quais as ações que me levarão necessariamente ao céu. Se tenho controle completo sobre a pureza de minhas intenções, o resultado prático de minhas ações seria irrelevante. Deus estaria obrigado a me salvar. Atos e intenções, contudo, existem em um estado de entanglement. Apenas o observador do experimento é que pode "decidir" o que aconteceu ou porque alguém foi salvo. Apenas Deus está qualificado como observador capaz de decidir entre os infinitos estados quânticos que compõem a realidade.

Curiosamente, a espera recomendada por Oséias e sublinhada por Paolo é a mesma espera requerida por Erwin Shröedinger em sua resposta a Einstein e publicada em Naturwissenchften em novembro de 1935 (a tradução em inglês é do Proceedings of the American Philosophical Society, 124, 323-38.):

"One can even set up quite ridiculous cases. A cat is penned up in a steel chamber, along with the following device (which must be secured against direct interference by the cat): in a Geiger counter there is a tiny bit of radioactive substance, so small, that perhaps in the course of the hour one of the atoms decays, but also, with equal probability, perhaps none; if it happens, the counter tube discharges and through a relay releases a hammer which shatters a small flask of hydrocyanic acid. If one has left this entire system to itself for an hour, one would say that the cat still lives if meanwhile no atom has decayed. The psi-function of the entire system would express this by having in it the living and dead cat (pardon the expression) mixed or smeared out in equal parts."

Não é necessário ir muito além na história do gato de Schroedinger, o ponto que nos interessa é que não sabemos, rigorosamente, se o cato está vivo ou morto enquanto essa hora passa. Só o observador pode produzir o colapso da função de onda em um de seus estados.

Paolo está dizendo que ninguém pode ser o juiz de sua própria função de onda. Guarda a Razão e a Intenção, mas espera em Deus.



Imagem: O gato de Schroedinger em seus dois estados.

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