sexta-feira, 30 de outubro de 2009

que ja non gart dreit ni mesura

Menos impressionante que uma descrição moralmente negativa dos fatos triviais da vida, beber, comer, vaidades da profissão e das habilidades ou beleza pessoal ou mesmo a atribuição de um caráter pecaminoso grave ao que pode parecer apenas trivialidades da existência, é a conversão a este sistema de valores. São Francisco Borja certamente viu muitos cadáveres antes de proceder ao enterro de Isabel de Portugal: com eles nada aprendeu. Em determinado momento, em determinado dia, a podridão da carne lhe pareceu intolerável.

Sigo com a impressão de que o grande problema humano continua sendo a conversão, entendida no sentido amplo da palavra. Aquela estranha solenidade exaltada visível nos textos do apóstolo Paulo e de Vladimir Ilitch Lênin.



José Moreno Carbonero (1860-1942). Francisco de Borja y Aragón diante do caixão de Isabel de Portugal.

tot un cor vol aver per se

"Let me disclose the gifts reserved for age
To set a crown upon your lifetime's effort.
First, the cold friction of expiring sense
Without enchantment, offering no promise
But bitter tastelessness of shadow fruit
As body and soul begin to fall asunder.
Second, the conscious impotence of rage
At human folly, and the laceration
Of laughter at what ceases to amuse.
And last, the rending pain of re-enactment
Of all that you have done, and been; the shame
Of motives late revealed, and the awareness
Of things ill done and done to others' harm
Which once you took for exercise of virtue.
Then fools' approval stings, and honour stains.
From wrong to wrong the exasperated spirit
Proceeds, unless restored by that refining fire
Where you must move in measure, like a dancer.'
The day was breaking. In the disfigured street
He left me, with a kind of valediction,
And faded on the blowing of the horn."

T.S. Elliot. Little Giding. Parte II.



Alonso Cano (1601-1667). São Francisco Borja. O santo carrega um crânio com o diadema imperial, referência à missão recebida de levar os restos de Isabel de Portugal para o túmulo em Granada. O caixão teve de ser aberto, antes que o cadáver fosse posto na cripta. Profundamente chocado, o bisneto de Alexandre VI jurou nunca mais servir um soberado terreno.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Nescio quid dicis

Considera, che in questo Mondo non v'è godimento puro, se non è quello, che Dio communica al cuore de' suoi divoti. O gozo dos ímpios é impuro e torpe, ó quanto há de dor ali! Vê os bens idolatrados - os prazeres, as riquezas, as honras - e verás que gozo é este: cheio de amargor, inquietude, enfermidade, litígio, tédio, emboscadas, agitações, raivas. No riso se mistura a dor pois se não lhe acompanha o pecado, lhe segue de perto. O pecado é engolido como pão, se mastiga por vontade. Considero como esse gozo é mesclado com a dor e na morte ocupado inteiramente pelo luto, causado pela consideração do passado, do presente e do futuro. Luto pela recordação do Mal feito e o Bem deixado de fazer! Luto por abandonar aquilo que é por força de abandonar! Deixar o próprio corpo aos vermes. Luto pelo temor do julgamento divino, por uma eternidade de castigo ou prêmio, pelo rigor do Juiz, pela sentença irrevogável, pela pouca segurança do réu.

Para os justos, tudo ao inverso. A tranquilidade da boa consciência na hora da Morte, a memória de ter servido a Deus (ao menos tentado). No presente, haver destacado o coração das criaturas e de si mesmo. In riguardo al futuro, gli conforterà la Misericordia del Giudice, a cui tante volte si sono raccomandati, mentre era loro Avvocato. A te sta ora il vedere qual sia quel riso, a cui tu vogli appigliarti.

(febbrajo xv, Provérbios 14. 13. Risus dolore miscebitur...)



Imagem: Diabo alimenta os pecadores. Século XVI.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Mal'aventura Deus li don

A reconciliação universal ou apocatastasis, em grego, é uma doutrina atribuída a Clemente de Alexandria (m. 215) e Orígenes (m. 254) , apoiada em Coríntios I, 15-28, e certamente alimentada pela insuportável idéia de um mal eterno. São Basílio (330-379) fixou a doutrina contrária e a apocatastasis foi declarada anátema no quinto concílio de Constantinopla (553).

Nos últimos anos, várias autoridades cristãs, católicas, protestantes e ortodoxas, vêm se pronunciando a favor da doutrina da reconciliação universal.

http://www.romancatholicism.org/cormac-apokatastasis.htm

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

quais vergoinos parec vermeilz

"Especulación más curiosa es la presentada por el teólogo evangélico Rothe, en 1869. Su argumento —ennoblecido también por la secreta misericordia de negar el castigo infinito de los condenados— observa que eternizar el castigo es eternizar el Mal. Dios, afirma, no puede querer esa eternidad para Su universo. Insiste en el escándalo de suponer que el hombre pecador y el diablo burlen para siempre las benévolas intenciones de Dios. (La teología sabe que la creación del mundo es obra de amor. El término predestinación, para ella, se refiere a la predestinación a la gloria; la reprobación es meramente el reverso, es una no elección traducible en pena infernal, pero que no constituye un acto especial de la bondad divina.) Aboga, en fin, por una vida decreciente, menguante, para los reprobos. Los antevé, merodeando por las orillas de la Creación, por los huecos del infinito espacio, manteniéndose con sobras de vida. Concluye así: Como los demonios están alejados in-condicionalmente de Dios y le son incondicionalmente enemigos, su actividad es contra el reino de Dios, y los organiza en reino diabólico, que debe naturalmente elegir un jefe. La cabeza de ese gobierno demoníaco —el Diablo— debe ser imaginada como cambiante. Los individuos que asumen el trono de ese reino sucumben a la fantasmidad de su ser, pero se renuevan entre la descendencia diabólica. (Dogmatik, 1,248.)

(...) Yo creo que en el impensable destino nuestro, en que rigen infamias como el dolor camal, toda estrafalaria cosa es posible, hasta la perpetuidad de un Infierno, pero también que es una irreligiosidad creer en él."


Jorge Luís Borges. La duración del infierno (em Discusión, 1932).


domingo, 18 de outubro de 2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

qui domicilium habebat in monumentis

Considera, con quanta regione dovresti haver sempre in bocca queste parole di sopra addotte (Olhará para os homens e dirá: pequei e perverti o direito, o que de nada me aproveitou, Jó 33.27). Tanto te lamentas das provações enviadas por Deus e não pagas nem uma pequeníssima parte do que deves, por comissão e omissão. Deves dizer as palavras de Jó com crença real. E afinal, que são as adversidades de Mundo comparadas às do Inferno? Considera que mesmo no Inferno, todos os danados podem dizer essas palavras com verdade, ainda que não digam: porque a verdade não pode encontrar lugar para sobrepujar o furor. Or argumenta tu, s'è citra condignum quel fuoco dipinto, che Dio di quà fa provarti, mentre ancora sarebbe citra condignum quel fuoco vero, che ti ha di là risparmiato.

(febrrajo xiv, Jó 33.27)

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

ja non dira pois tanta reva

A modernidade, que tanta troça fez do sacrifício do corpo pelas doutrinas religiosas, que tanto riu das disciplinas impostas à carne em nome de ideais ultramundanos, não consegue fugir de sua própria armadilha. Nem vamos falar da obsessão com dietas, da ingestão ritual de vitaminas e medicamentos contra a absorção de lipídios e açúcares, as infinitas revistas nas bancas de jornal com prescrições de exercícios físicos - resultado inevitável da idéia de que o corpo não paga um preço pelo descaso da mente. Essas ironias, nem de longe, são as mais interessantes.

O fascinante é o seu inverso, anotado, por exemplo, nesse artigo do Observatório Brasileiro de Informações sobre Drogas:

"Apesar de já haver estudos científicos e pesquisadores dos mais avançados laboratórios do Mundo trabalhando em torno do doping genético, a juventude dos dias atuais continua exposta ao perigo real dos anabolizantes. O consumo desenfreado dessas drogas tornou-se epidêmico dentro da sociedade, sem distinção de faixas etárias ou classe econômica. É uma epidemia estimulada na supervalorização do físico pela indústria e pela comunicação de massa, que normalmente encontram nas crianças e adolescentes - ávidos por novidades e necessitados de auto-afirmação - os seus alvos mais frágeis.

Uma pesquisa realizada pela Universidade de Massachussets com 975 crianças norte-americanas entre 9 e 13 anos traz resultados alarmantes: 32% dos garotos conheciam um colega da mesma idade que estava utilizando esteróides anabolizantes. E ainda: 2,7% dos meninos e 2,6% das meninas admitiram consumir tais substâncias. Isso significa, na melhor das hipóteses, que numa sala de aula com 50 alunos da 4ª série do ensino fundamental pelo menos um já assume que está se drogando."

Se tal esforço não é a realização da sugestão de Segneri, fazer do corpo o servo da alma, distorcido até seu paralelo lógico... O curioso é que a reação inevitável de familiares e autoridades é copiar a retórica moralizante do século XVII:

"Essa situação atual pode ser o reflexo da nossa sociedade elitista dita moderna e da nossa civilização, em que se nota uma inversão de valores que enfatiza o estar em maior evidência. O uso dessas drogas continua sendo praticado e muitas vezes estimulado pelo próprio sistema", explica um dos maiores especialistas sobre o assunto no País, Azenildo Moura Santos, autor do livro O Mundo Anabólico. Azenildo tentou fazer uma pesquisa semelhante dentro das escolas de Pernambuco, mas encontrou forte resistência dos donos de colégios."

A um religioso do século XVII, padecendo de disciplinas penosas, que respondesse ser a vida nesse mundo uma breve passagem, indigna de maior consideração, que deveria ser usada apenas para garantir maior felicidade no outro mundo, essa é a resposta do homem do século XXI:

"Assim como aconteceu com o fumo há quase 200 anos, a droga é associada à modernidade, beleza e à saúde. Apesar de começarem a ser denunciados casos de câncer de fígado, hepatite tóxica, entre outras sérias doenças relacionadas ao uso de anabolizantes, ainda existe uma forte resistência dos consumidores dessas substâncias que garantem que os efeitos nocivos variam de pessoa para pessoa. "A verdade é que quem usa essas drogas hoje ainda corre riscos desconhecidos", afirma Azenildo Moura. Já o médico Osmar Santos é mais incisivo: "Um garoto que começa a usar anabolizantes aos 11 anos não chega aos 18 inteiro".


In qua potestate haec facis?

Considera, che questo servo à tuo corpo. Mas há que ter regras para seu governo. Nutri-lo, sim, mas sem delicadezas, porque, como servo, vai fatigar-se, viajar, trabalhar. Quantas vezes te alimentastes sem outra intenção que nutri-lo? É preciso recordar-lhe que é servo. Se padece frio, se padece fome, paciência. Não é devido à sua vil condição? Considera o dano se o conduzes com muita delicadeza. Se tornará contumaz, recalcitrante, desobediente. Que confusão não será se assim tratares teu fâmulo? Este acariciamento é tanto mais prejudicial na juventude. Na velhice, não podes esperar tanto mal de teu amor pelo corpo. Assim acostuma-o a um padrão, como ao servo que há muito tens dentro de casa. Questa diversità però sempre passa tra 'l corpo, e tra altri servi: che verso gli altri non milita quell'amore si sregolato, che milita verso il corpo, l'amor proprio: e però in dubbio, la virtù vuole che con gli altri servi sii più benigno, che rigoroso; col corpo, che tu sii rigoroso, più che benigno.

(febbrajo xiii, Provérbios 29, 21)

sábado, 3 de outubro de 2009

Dieus, e que dis? que vol? que.m quer?

A Igreja Católica não tem conseguido evitar um injusto dilema imposto pela política moderna. Quando defendeu a liberdade e a propriedade, diante da ameaça da Revolução Socialista, foi tachada de amiga dos ricos e dos opressores. Quando passou a defender os pobres, a Teologia da Libertação foi acusada de mero disfarço do marxismo. Um olhar imparcial notaria que a escala temporal da Igreja é superior ao do capitalismo e que o socialismo sequer completou um século de existência fora dos livros: ela não tem porque fixar-se em assuntos menores.

A invectiva de Segneri, seguindo as palavras de Jesus, sublinha, na verdade, a histórica urgência de moderar a mensagem política do cristianismo. Desde seu início, se não é uma religião contra o Estado, é uma religião que impõe limites bem claros ao exercício do poder político e questiona frontalmente o status moral de qualquer autoridade. O Império Romano foi forçado a controlar sua força dissolvente das relações sociais deste mundo, visível na confrontação proposta pelos mártires e pela força do movimento monástico.

Nos dias que vão, há um esforço de convencer milhões de cidadãos de que a política é um domínio existencial relevante. Nas grandes democracias, as lideranças decaem para o status de celebridades do circo e os eleitores pouco se interessam em votar, na ausência de sanções legais. No mundo do capitalismo asiático, os indivíduos seguem satisfeitos com uma liderança forte. O Estado democráticos é frágil como construção de apelo geral, qualquer mitologia autoritária bem ordenada (nazismo, socialismo revolucionário, fascismo, confucionismo de Estado, etc) representa uma ameaça. O cristianismo, uma ameaça ainda maior.

Praticamente no mesmo tempo em que Segneri chamava atenção para a lição de Cristo - a autoridade humana é abominação diante de Deus -, homens de fé na Inglaterra tentavam pô-la em prática. Respeitar a Realeza e a Propriedade é apenas uma forma de idolatria - uma abominação. Não existe autoridade humana diante de Deus, nenhuma posse desse Mundo será justificada no outro.

O ensinamento de Jesus - "meu Reino não é desse Mundo" - frequentemente é descrito como politicamente conformista. Não é.


Gerrard Winstanley. Uma Declaração do Pobre e Oprimido povo da Inglaterra dirigia a todos os que se denominam Senhores de Terras. (1649).




Idem. O Padrão dos Verdadeiros Niveladores. (1649)