sábado, 29 de agosto de 2009

Drum lass ich ihn nur walten

Was Gott tut, das ist wohlgetan,
Es bleibt gerecht sein Wille;
Wie er fängt meine Sachen an,
Will ich ihm halten stille.
Er ist mein Gott,
Der in der Not
Mich wohl weiß zu erhalten;
Drum lass ich ihn nur walten.

O que Deus faz, está bem feito,
Permanece justa sua vontade;
Quando governa meus assuntos,
A Ele hei de guardar em silêncio.
Ele é meu Deus,
Que na Tristeza
Sabe bem como me guardar;
Portanto a Ele só deixo comandar.

(Primeiro coro, BWV 100, Was Gott tut, das ist wohlgetan III, poema de Samuel Rodigast, música de J.S. Bach)




(Imagem: Mosaico de Santo Apolinário in Classe, Ravena)

Si spiritu vivimus, spiritu et ambulemus.

Considera, che come il tuo corpo in tutte le sue operazione è mosso dell’anima, cosi la tua anima dev’essere ancora mossa in tutte le sua operazione dallo Spirito Santo; perchè come l’anima è vita del corpo, cosi lo Spirito Santo è vita dell’anima. Mas como é isso que outro Espírito te guiaria em suas operações. Sim, pois sem Deus teu espírito flutua sem direção, não se guia ao Paraíso, como adverte Gálatas 5, 25. Três são os vícios que te impedem de andar segundo o Espírito: Vanglória, Ira, Inveja. Não vês os que dão esmolas e pregam pelo amor do aplauso? Considera quão cativo é o espírito da vanglória, chamado espírito porque tem o poder de inflar-se: não é sólido, nem verdadeiro, nem útil – é vão. Não é sólido, pois se esvai; não é verdadeiro, pois não se ampara na boa opinião; não é útil porque não te ajuda em teu fim - o Paraíso. A glória pode te buscar, mas não te deixes inflar. Considera quão cativo é o espírito da Ira, chamada espírito por ser impetuosa. Afeta as três formas da Paz: do coração, com o próximo, com Deus. Te leva a paz do coração porque te faz como o Mar, che non può assaltare la nave, se non si turba. Te leva a paz com o próximo pela discórdia que promove. Te leva a paz com Deus, porque defender-se a si mesmo é demonstar que não confias em Deus. A Ira de Deus é sua Justiça – mas é preciso lhe dar o tempo justo, pois é uma ira tranqüila. Considera o espírito da inveja, chamado espírito porque seca – seca teus ossos. A inveja é chamada podridão, pois nasce do bem dos outros. Não é melhor render graças a Deus do que a outros? Quando cometeres um ato de inveja, castiga-te de pronto de forma solene, antes que a podridão te mate, penetrando-te nos ossos. A Ira e a Inveja são germes pestíferos do amor à glória humana. Odeia estes vícios que causaram a morte de Jesus, l’ira de’ Sacerdoti, sforzati dalla sua predicazione, l’invidia degli Scribi, storditi da’suoi prodigi.

(febbrajo vii, Gálatas 5, 25).

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Guillems es a vespras vengutz


Por uma curiosa coincidência, Isaac Fieri registrou a força do texto de Segneri e, em seu blog, havia uma referência ao mesmo experimento mental: o filme Groundhog Day (1993), escrito por Danny Rubin e Harold Ramis. Condenado a repetir o mesmo dia, o personagem de Bill Murray primeiro vive um pesadelo, tenta se matar várias vezes, mas aceita a redenção que, na leitura contemporânea, envolve realização romântica e a prática de pequenos atos de benevolência. O roteiro examina, ademais, com grande perspicácia o problema teológico da repetição e da redenção: ela proporciona o exame da própria vida, sempre evitado pelo personagem de Murray.

Há outro ângulo do experimento, também examinado pelo cinema em Retroactive (1997), escrito por Michael Hamilton-Wright, Robert Strauss e Phillip Badger. Nesse caso, Karen assiste um assassinato e, por meio de viagens no tempo, retorna ao mesmo ponto e tenta alterar o curso dos eventos, mas eles sempre se repetem para o pior. Repetir a vida de uma forma rendentora exige que você esteja no comando dos fatos - o que nem sempre é realista. Nada garante que um condenado à danação volte à vida e consiga corrigir seus caminhos, como sugere Segneri.

Muito depende da consciência de viver uma segunda chance. Há um célebre episódio de Star Trek New Generation em que a Enterprise está condenada há um ciclo catastrófico que repete, sem saber que está repetindo. Nesse caso, a passagem do tempo é neutra e o roteirista teve de inventar um recurso extraordinário para que o comando da Enterprise percebesse que estava preso em uma armadilha temporal.

Ora, se tudo depende da consciência, Segneri está correto em apelar para um thougt experiment. Imagina, nesta vida, que podes reverter o seu curso, como se começasses uma outra.

Pós-escrito: O episódio de Star Trek New Generation é Cause and Effect, número 18 da quinta temporada, exibido em 23 de março de 1992. O roteiro é de Brannon Braga e traz a Enterprise presa em um time loop. A tripulação descobre que está em um ciclo catastrófico que se repete, mas precisa receber uma mensagem que lhe indique como sair do ciclo. Data e Riker tem suas alternativas, mas Data percebe que a sua é mero fruto de uma memória e não uma mensagem. Adota a saída de Riker e a Enterprise evita a colisão com a Bozeman. A primeira nave estava no loop há 17 dias; a segunda, há oitenta anos. Uma vez mais, é preciso a consciência correta de uma repetição temporal para que seja evitada a catástrofe. Ou o Inferno, como quer Segneri.

domingo, 23 de agosto de 2009

Docebat autem discipulos suos

Considera Che gli anni passano presto, e che sai cosi, voltati indietro e rimira quei c’hai già scorti. Como parecem breves e assim hão de parecer os que ainda vêm. E todavia os gastas com vaidades? Vai-te a fazer a boa oração, a salmejar, a estudar, a operar em prol do próximo. Colherás na Eternidade o que houveres semeado no teu tempo. O tempo não é apenas curto: é irrevogável. É como a água que corre em seu leito. Ó, como lamentarás, na hora da morte, o tempo perdido. Vê como o tempo é precioso! Toda a partícula de tempo, se bem a traficas, te pode aproveitar muito em uma Monarquia, a maior do Universo. Considera o que não faria um danado se ressuscitasse e pudesse começar tudo de novo. Cuidas que desperdiçaria o tempo dado por Deus? E se tivesses de dar um preço ao tempo se não pudesses mais tê-lo? La vita umana é uma strada, La qual si batte uma volta sola. Chi sà pigliare le opportunitá ch’egli incontra de arrichire, di aprofittarsi, beato lui. Chi le trascura non può in eterno tornare indietro a corrigere l’error fatto.

(febbrajo vi, Jó 16, 23)

sábado, 22 de agosto de 2009

Quan l'us de l'autre si gausis



(Imagem: Pasinelli, Lorenzo, 1629-1700. Concerto de Anjos (c. 1650). Gravura, água-forte).

terça-feira, 18 de agosto de 2009

de paradiz fora tots dons.


A nota para o dia 5 de fevereiro traz um registro importante - a escolha de Jesus; e uma idéia belíssima: a opinião que sobre cada um têm os anjos no Paraíso. Não achei ainda a versão que procuro do Tratado do Anjo da Guarda, do padre Antônio de Vasconcellos, cuja primeira parte foi publicada em Évora, em 1621, e a segunda (Obra do Anjo da Guarda), em Lisboa, no ano de 1622, mas é possível adiantar alguns comentários.


Existe um livro recente sobre a existência do livre arbítrio no Paraíso e não me lembro se faz menção à figura empregada por Segneri: a opinião angélica sobre cada um. O que de mim pensam os Anjos? é a pergunta que recomenda. Julgo difícil sustentar, contudo, seriamente, que os Anjos possam ter uma opinião que não seja exatamente a de Deus. Não tendo eles o livre arbítrio, não podem ter um julgamento, sobre nós, que seja independente da condenação ou da graça de Deus.

Há uma exceção, naturalmente: aquele Anjo e seus companheiros que não se curvaram diante do Homem. Estes seriam os únicos Anjos que poderiam, sem contradição, ter uma opinião sobre cada um dos homens.

Sobre a escolha de Jesus Cristo, é inevitável a comparação com a escolha da justiça, tal como exposta por John Rawls. Sua conclusão é conhecida: a incerteza de nossa posição na Ordem do Mundo nos faz racionalmente escolher uma Ordem em que a pior posição pode ser, apesar de tudo, tolerável. Estranha a Justiça de Deus: podendo escolher sua posição na Ordem do Mundo, deixou que lhe coubesse, na condição de Homem, uma completamente intolerável.

(foto: John Rawls)

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

sustinuit crucem, confusione contempta

Considera qual’è questa bataglia, che ti è proposta, propositum tibi certamen. É aquela que sustentas contra os três inimigos, imoderado amore alla roba, imoderado amore ai piaceri, amor da reputação. Primeiro deves deixar de lado os impedimentos, depor o peso dos pecados para enfrentar mais leve a batalha. Segundo, deves tomar o exemplo de Jesus, um Senhor tão delicado. Pega o crucifixo e pondera sua Paixão. Considera que ele não te propõe uma batalha que lhe era desconhecida. Ele escolheu ser pobre, ele escolheu a dor, escolheu o desprezo. A ti fará muito superar a pobreza para servir a Deus, superar a Dor, mas antes de tudo fará o superar o Desprezo. Considera que não se diz (Hebreus 12, 1) que Cristo superou o desprezo, se diz que o desprezou, confusione contempta; porque este é o modo de superá-lo facilmente, desprezá-lo. Isto faz aos tementes um pouco de confusão; a muita estima dos juízos humanos. Que importa a ti aquilo que te diz a gente? A verdadeira estima é aquela que se forma de ti no Paraíso, entre os Anjos, entre os Arcanjos, no trono augusto das três Pessoas Divinas. Àquela pois, é necessário, que olhes. Esta dos homens é vã, é instável, é injusta, é enganadora e, para ser breve, deixa-a andar. Como seja. Questo in uma parola è cio, Che ci vuole a vincere facilmente la confusione, non l’aprezzare.

(febbraio v, Hebreus 12, 1)

domingo, 16 de agosto de 2009

Quan dui amant fin e coral


Até o momento, não consegui descobrir a fonte usada por Paolo Segneri para atribuir a Mithridates a transformação em porco, em sua nota referente ao 4 de fevereiro. Essa transformação é um tropos comum na Antiguidade, sempre consequência de um comportamento lúbrico ou desordenado. O mais célebre exemplo, naturalmente, é a transformação dos companheiros de Ulisses em porcos por obra da feiticeira Circe. O herói não teve a mesma sorte, como se sabe, por ter recebido um oportuno antídoto.

Curiosamente, há vários pontos de contato entre essa lenda e a referência de Segneri. Circe, segundo algumas versões, fora esposa de um rei sármata e habitara o Cáucaso. Mithridates era rei do Ponto, mas se refugiou na Armênia certa vez. Tinha o hábito de consumir poderosos antídotos para se prevenir de qualquer envenamento. Dormia cercado de animais, para ser avisado da aproximação de um assassiono: um cavalo, um cão e um javali.

Tenho a impressão de que Paolo Segneri produziu uma curiosa associação de idéias.

(imagem: Circe e seus porcos, 1892. Briton Rivière. 1840-1920 )

et aissi er lur gaugz entiers

Em comentário abaixo, Isaac Fieri chama atenção para a proximidade entre a mística de São João da Cruz e a citação de Santo Agostinho por Segneri, na nota referente ao 4 de fevereiro. Suspeito, porém, que o objetivo, de Agostinho e de nosso jesuíta predicante é menos místico que edificante. Naturalmente, o platonismo admite um leitura mística, mas esse caminho seria de pouca utilidade para um pregador missionário. Segneri busca trazer pessoas comuns à vida religiosa e não exaltar vocações místicas. O caráter problemático da citação - a possibilidade de perfeição na Terra - não se aplica à vocação mística. Os problemas, nesse caso, são bem outros e deles São João da Cruz, por sinal, não escapou.

sábado, 15 de agosto de 2009

Car Amors vens los venzedors

Para sustentar a afirmação ousada de que cada um é aquilo que ama - seja o Bem, seja o Pecado -, usa uma direta citação de Santo Agostinho. Está no comentário sobre a Epístola de João: Quia talis est quisque, qualis eius dilecto est (2.14.5). Cada um é tal como é seu deleite. A frase é problemática: alude à dissolução das fronteiras entre o Homem e Deus. Precisa ser explicada em seu evidente platonismo.

O emprego da expressão latina em um mecanismo de busca na internet revela a pertinência imediata da preocupação. Nos tempos que vão, poucas coisas parecem vedadas ao Homem, entre elas a aspiração à divindade. Segneri, talvez sem refletir, abraçou um caminho teológico perigoso, merecedor de comentário. É o que faz o também jesuíta David Vincent Meconi, em um cuidadoso artigo publicado ainda no ano passado: “Becoming Gods by becoming God’s: Augustine’s mystagogy of Identification”. Augustinian Studies 39:1 (2008), 61-74.

Começa Meconi: “Mas o que está implícito em tal identificação? Como podem os crentes se tornar os objetos que encontram na narrativa cristã? Este ensaio sustenta que a insistência de Agostinho para que os fiéis se tornem coisas de Deus é motivada por três convicções centrais. Primeira, a natureza icônica do cosmos. O mundo visível é sinal e manifestação de seu criador invisível. Segunda, a concepção de Agostinho do papel e propósito dos sinais que contêm e indicam realidades mais altas. Ele sabia como Deus educava seu povo por meio de coisas visíveis para que melhor aprendessem as invisíveis. Terceira, a teoria que chamarei de diligência simpática, a profunda apreciação de Agostinho do poder do amor em transformar o amante naquilo que ele contempla. Para concluir, este ensaio levanta o freqüentemente esquecido coração da soteriologia de Agostinho – a humanidade se tornando deuses." (pág 63).

Meconi não se preocupa em questionar a origem platônica dessa idéia, as teorias do amor e do conhecimento expostas, por exemplo, no Banquete. Limita-se a descrever a adaptação cristã conduzida por Agostinho:

"Neste ensaio, vimos como os símbolos religiosos são usados por Agostinho para chamar os crentes mais intimamente à vida divina. A liturgia se torna, assim, o locus deificandi, o lugar onde o drama da salvação humana é não apenas revivido, mas efetivado. Cercado pelo templo do louvor e tudo o que há em seu interior, as pessoas devem contemplar como Deus demanda que se tornem seus sinais vivos. Ouro, óleo, árvores, o altar do sacrifício, o Sabá e o canto dos cristãos são todos constituídos para cultivar a vida plena dos que são batizados e para chamá-los a uma união mais próxima com o divino, tornando-se deuses por se tornarem de Deus” (pág 74).

Em sua conclusão, o jesuíta Meconi usa, então, precisamente a citação do comentário de Agostinho e registra que no seu parágrafo 48 o Segundo Concílio Vaticano adota a mesma retórica, pedindo a participação ativa dos fiéis.

Não se trata, aqui, de uma vã sutileza. Segneri e Meconi desmentem, na aceitação tácita da idéia platônica, um cristinismo baseado na negação das coisas belas desse Mundo. Onde há beleza, há um caminho para Deus, sugeriu o filosófo ateniense e concordou o bispo de Hipona. Os dois jesuítas fazem apenas um comentário tardio.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Magister, increpa discipulos suos

Considera la differenza ammirabile, la qual passa tra l’intelleto, e la volontà. Se um pensamento abominável te molesta nem por isso te fazes abominável. Evita, porém, que em ti a vontade se transforme em ato. É quando te tornas terreno, animalesco, diabólico. Considera que essa transformação foi posta na alma pela deformidade do Pecado. Vê como o Pecador na Escritura é chamado de Víbora, de Cavalo, Cão e Porco por amar o que é próprio desses animais. Assim foi com Mitridates, rei da Armênia. Considera que, quem ama o abominável, se faz abominável. Cada um é como o que ama, disse Agostinho. Mas a Deus não basta um amor de simples complacência. Dev’essere efficace, vivo, veemente, e símile a quel che pruovi dentro te stesso, quando sai d’amar daddovero.

(febbrajo iv, Oséias 9, 10).

terça-feira, 11 de agosto de 2009

Per la via se cantavano


É bem possível que Massei estivesse consciente da transformação que registrou, do jovem promissor ao pregador missionário, cujo trabalho se estenderia por quase trinta anos, entre 1665 e 1692, quando o Papa lhe chamou a Roma.

O biógrafo comenta todas as fases da formação e da maturidade de um jesuíta militante. O estudo das Orações de Cícero com o propósito anunciado de aprender como mover corações e mentes. O desejo de oferecer-se ao martírio. A crise espiritual, iniciada subitamente em Peruggia, à qual não falta nem mesmo a motivação pontual da surdez que o acometeu. O ímpeto de livrar-se de todo e qualquer bem material desnecessário para sua missão. (Quem nunca sentiu que a posse de objetos materiais é um obstáculo para o cumprimento de um destino espiritual?)

Por fim, a descrição de suas prédicas religiosas, verdadeiros acontecimentos públicos se desdobrando de vilarejo em vilarejo, a partir de um planejamento detalhado, e acompanhados dos maiores cuidados na expressão do sentimento religioso. As caminhadas que fez descalço e mal vestido, as lágrimas abundantes na condução da missa, a reconciliação pública de inimigos jurados, os cortejos, as curas milagrosas, etc.: não há nisso tudo um sinal da realização pessoal do militante autêntico, pouco interessado nas sutilezas da hierarquia de uma organização e dedicado ao trabalho de campo? Não há algo de estranho e, ao mesmo tempo familiar, nesse leitor de Cícero e tradutor do latim andando pelas estradas esquecidas da Itália para falar de Jesus Cristo?

(Raguaglio, capítulos 5 a 11).


(Imagem: Ciro Ferri, 1634-1689, Prediche dette nel palazzo apostolico da Gio Paolo Oliva... In Roma : Ap Gio. Casoni, [entre 1655 e 1683]. Gravura: buril e água-forte.)

sábado, 8 de agosto de 2009

Ab lo comte de Lovanic

“E porque a experiência mostra o pouco abalo e movimento, que nos pecadores grandes faz a pregação dos vivos, desejara eu que antes os mortos vieram pregar a estes frenéticos da culpa para que tornaram em si, dando volta à vida e largando a loucura miserável em que vivem: para que com este meio ou largassem as culpas ou se justificasse mais a causa de Deus: porque mais abalo faz em pecadores obstinados da pregação de um morto, do que muitos clamores de um vivo”

(Frei Antonio das Chagas, Escola de Penitência e Flagelo de Viciosos Costumes. Sermão Quinto. Em que se trata da grande Dificuldade em que há em se converter a fazer penitência a Nobreza e Fidalguia, principalmente nas Cortes, págs 342-343, Lisboa, 1687).

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Bem meravill on a son cor


Em abril de 2007, o instituto Datafolha publicou uma extensa pesquisa de opinião sobre o estado das práticas religiosas no Brasil, revelando um panorama de relativa intensidade.
Ao responder um questionário, a pessoa não precisa dizer a verdade, mas as taxas alegadas de comparecimento a cultos é elevada no país:

O percentual de fiéis que costuma ir à Igreja, cultos ou serviços religiosos não difere muito, quando se trata da religião declarada: 94% dos católicos, 98% dos evangélicos pentecostais, 99% dos não pentecostais e 95% dos espíritas dizem ir. Os umbandistas e os adeptos do candomblé costumam ir um pouco menos a serviços religiosos (82% e 84%, respectivamente). Quando se trata da freqüência, os evangélicos pentecostais se destacam: 60% deles dizem ir ao culto mais de uma vez por semana e 25% declaram presença pelo menos uma vez por semana. Entre os católicos essas taxas são de, respectivamente, 16% e 35%. Um terço (30%) dos que declaram não ter religião ou que se declaram ateus dizem ir à igreja, a cultos, ou serviços religiosos.

É fácil notar que a distância entre os números de comparecimento e de frequência recomendam cautela. Se 60% dos evangélicos declaram assistir cultos mais de uma vez por semana, apenas 16% dos católicos fazem o mesmo. Dentre os católicos, a maioria da população, apenas 41% vão à Igreja pelo menos uma vez por semana. Por sinal, no Brasil, mesmo os ateus vão a cultos religiosos.

A pesquisa sugere ainda que o culto religiosos pode ter se transformado em um assunto de ordem particular. Poucas pessoas declaram ir à Igreja para ouvir padres e pastores ou mesmo dar graças. O centro da religião contemporânea no Brasil é a prática da oração:

Os entrevistados que costumam ir à igreja ou a cultos e serviços religiosos dizem que têm esse hábito porque, entre outros motivos, gostam de rezar ou de orar (21%), porque se sentem bem, fortalecidos ou em paz (19%), para pedir uma graça (13%), para escutar pregações ou sermões (12%), para se aproximar, cultuar e servir a Deus (10%) e para agradecer por graças obtidas (9%).

Não se pode, contudo, afirmar que a religião é apenas um ritual privado. Um quinto dos entrevistados afirma ter mudado sua vida como resultado de orientação religiosa:

Aproximadamente um quinto (21%) dos entrevistados afirma já ter mudado algum hábito ou deixado de fazer alguma coisa por causa de sua religião. A maioria (54%) dos evangélicos pentecostais já fez mudanças em sua vida diária por motivos religiosos. As mudanças mais citadas por esses entrevistados foram parar de beber ou diminuir o consumo de álcool (24%), deixar de ir a bailes, festas, de sair à noite (21%), parar de fumar ou reduzir a quantidade de cigarros consumidos (15%), mudanças no vestiário (7%), parar de usar maquiagem e adereços como brincos, por exemplo (6%).

A taxa dos que dizem já ter mudado seus hábitos por causa da religião também fica acima da média entre os evangélicos não pentecostais (45%), entre os adeptos do candomblé (47%) e entre os espíritas (29%). Entre os católicos, por outro lado, 90% dizem nunca ter mudado sua rotina por causa da religião; entre os umbandistas essa taxa é de 81%.

Os números mostram, contudo, que o processo de conversão (típico das religiões protestantes) ou uma identidade cultural específica (caso das religiões de origem africana) respondem pelo poder de modificação dos hábitos pessoais em função de crenças religiosas. Os católicos, maioria da população, declaram não mudar seus hábitos pessoais por causa da religião.

Esses números expõem sob outra luz o indiferentismo religioso denunciado por Segneri, um pregador responsável por centenas de missões de predicação nas áreas rurais da Itália no século XVII. O fervor religioso não é uma característica da maioria dos crentes, a não ser em condições muito especiais.

Stubepant autem omnes, qui audiebant

Considera, che, ò tu attendi alle operazioni degli uomini, ò tu ne ascolti i discorsi, troverai tra esse pochissimi Penitenti. Muitos querem, poucos atingem. Mas o que vale uma vontade que não venha à obra? Daqueles que hão querido se penitenciar e não o fizeram, está cheio o Inferno. Considera quanto fazem penitência quando já estão fartos de pecar. Ninguém faz a Penitência porque não se pergunta: o que fiz? Não se medita no que se fez ao pecar. Oh quanta ragione hai di gridare: quid feci? Misero me, quid feci? quid feci? Ma tu non vi pensi.

(febbrajo iii, Jeremias 8, 6).

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Adormir! pron dormiren, pro


Depois da versão de Segneri, a aproximação da Morte segundo Jorge Luís Borges:

Límites

Hay una línea de Verlaine que no volveré a recordar.
Hay una calle próxima que está vedada a mis pasos.
Hay un espejo que me ha visto por última vez.
Hay una puerta que he cerrado hasta el fin del mundo.
Ente los libros de mi biblioteca (estoy viéndolos)
Hay alguno que ya nunca abriré.
Este verano cumpliré cinquenta años:
La muerte me desgasta, incesante.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

et occisus tertia die resurget

Considera che la maggior difficoltà di chi serve a Dio, pare che finalmente riducasi tutta quí, al non diffidar mai di lui, né tra le adversidades, nem entre as aridezas, nem entre aquelas ofuscações da mente, que fazem crer que ele já se tenha de nós totalmente subtraído. Quando Deus é evidente, fácil é operar; quando oculto, ele prova a tua constância. Considera o que se espera de ti. Primeiro, que o aguardes. Não te movas de teu posto, das Orações, da Confissão, da Comunhão. Considera que tal firmeza deve ser acompanhada de longanimidade, porque é fácil tê-la, mas não por muito tempo. Se o Senhor demora, pede por sua presença. Não duvides que ao fim ela haverá, pois ele a prometeu. Lembra de Simeão, que o teve entre seus braços. Non le pare ne meno di haver patiti i mali trascorsi; le par di haverli veduti. Prepara-te, pois, com boa face, para a sua chegada, pois a boa Morte é o prêmio dos que bem esperaram. Pensa que o Senhor já está vindo, que a Morte pode estar vizinha, que te chega, que te assalta. Quell accidente, che forse ha da cagionartela à già maturo. Cha farebbe dunque di te, se tu tra questo poco perdessi la tua constanza?

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

le donzellet ac tant plorat


As palavras de Segneri são fortes. A crucificação é uma suma nudez, uma suma dor, um sumo desprezo. Invoca, ao final, a figura de Santo Inácio de Antioquia (67-110), célebre por sua franca disposição ao martírio, consumado com o habitual terror: devorado por leões no Coliseu, sob o reinado do Imperador Trajano. A discussão sobre a autoria das cartas a ele atribuídas é infindável; não há dúvida, contudo, sobre o seu martírio e suas relíquias estão hoje guardadas no Vaticano. Ao menos, os ossos que restaram.

O martírio é algo repugnante para a sensibilidade moderna, que lhe atribui o estigma da ignorância e do fanatismo. O heroísmo na morte do soldado, do líder político e do cidadão comum é celebrado apenas ao ser enquadrado em um cálculo racional, ainda que concluído de forma funesta. A busca da morte pela morte, em nome de uma causa, é vista como um gesto bizarro e estrangeiro, como os monges orientais ateando fogo às vestes diante das câmeras de televisão no curso da guerra do Vietnã.

Os estudos científicos tendem, contudo, a refutar essa visão. A psicóloga Rona M. Fields em "The Psychology and Sociology of Martyrdom", um dos capítulos de Martyrdom: The Psychology, Theology, and Politics of Self-Sacrifice (edição Praeger, 2004) afirma, após estudar centenas de entrevistas com militantes religiosos radicais e pessoas que viveram experiências excepcionais de sofrimento ou tortura, que a jusificação do martírio pessoal é fruto de um longo processo de elaboração mental. As conexões que estabelece com a fisiologia da mente podem parecer exageradas, mas um fato é inegável: a disposição para o sacrifício pessoal não é um estado mental associado com indivíduos necessariamente violentos ou simplórios.

Ela poderia ter mesmo ensaiado uma conexão com as teorias da psicologia evolucionária: o sacrifício altruísta é um elemento importante na sobrevivência de espécies sociais. Não é surpreendente que seres humanos decidam morrer pelo bem da espécie em geral e não apenas para defender sua prole ou clã.

Rona Fields, contudo, nota outros aspectos do martírio, bem mais perturbadores. A sensação do ganho coletivo ou individual do martírio estaria associado ao seu caráter público. O evento assombroso ou macabro precisa servir de exemplo, precisa alimentar uma legenda. Um martírio secreto teria escasso poder atrativo para o crente ou o militante. Morrer por nada - este seria o terror.

Disse perturbador porque, como lembra um livro recente de Donald Kyle, Spetacles of Death in Ancient Rome (Routledge, 1988), a morte pública, do gladiador ou do condenado, era um espetáculo intencionalmente artístico. Não se tratava de uma execução, no sentido moderno do termo, a fria objetividade da forca e do pelotão de fuzilamento. A morte do Coliseu deveria divertir, instruir, ser criativa.

Quando um cristão, como Santo Inácio de Antioquia, se oferecia ao martírio estava plenamente consciente do que o esperava: uma morte pública e espetacular, capaz de se oferecer à memória dos séculos. Se tivesse permanecido na condição de terceiro bispo de Antioquia, morrendo obscuramente de alguma doença infecciosa, seria hoje uma mera nota na Coleção Migne. Morrendo devorado por leões em uma arena romana, pode surgir a qualquer momento, no cinema e na televisão. Por sinal, mesmo na condição de encenações, sem mortes reais, com leões treinados, continuam sendo espetáculos, imediatamente compreensíveis para os espectadores de Roma ou de hoje.

O mártir cristão sempre soube que a única utilidade real do Mundo é oferecer um lugar para o espetáculo de sua Cruz. Uma sociedade do espetáculo, como é a nossa, oferece, como Roma, o palco perfeito para o martírio.

(Imagem: O martírio de Santo Inácio de Antioquia, gravura medieval)

domingo, 2 de agosto de 2009

sed nova creatura

Considera, con quanta risoluzione esclami l'Apostolo di non volere in altro gloriarsi, che nella Croce del suo Signore: mihi autem absit gloriari, nisi in Cruce Domini nostri Jesu Christi. Não se gloriava na sabedoria do Senhor, nem em sua piedade, nem em sua potência. Queria gloriar-se com a Cruz. O que constitui a Cruz, se bem ponderas, são três coisas: uma suma nudez, uma suma dor, um sumo desprezo. O Mundo gloria as riquezas; o Cristão, a Cruz. Por isso, para ti, o Mundo é Cruz e tu deves ser, para o Mundo, Cruz. Ele volta as costas a ti; tu deves voltar as tuas a ele. O Mundo ri de ti; tu deves rir do Mundo. Isto fará uma perfeita crucificação. Para andar crucificado no Mundo, é preciso que ele esteja morto para ti. Deves renunciar aos bens mundanos em afeto, mesmo os tendo: Oh che prodigio, non collocare in tali beni il suo cuore, mentre tuttavia si possegono attualmente! O que não pode, se lhe dá lugar, o amor de Cristo? Abra o peito ao grande mártir Santo Ignazio e quivi il vedrai.

(febbrajo, i, Gálatas 6, 14.)