segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

De se trag din nem máre

A complexa dialética da soberba não impede Segneri de salientar os traços decisivos deste pecado mortal: a falta de limites. Na reflexão moral clássica ou cristã, esse é o traço decisivo: ultrapassar o marco divino imposto aos mortais. Em obra recente, O Fascínio do Mal - Os Vícios Capitais (2008), o jesuíta Giovanni Cucci quase repete a lição de São Gregório, com a ajuda da psicologia moderna: sob todo o Pecado há uma desmesura fundamental, um caráter obsessivo, diretamente ligado à soberba. Esta última seria, assim, na verdade, a fonte de todos os demais pecados.

A complexidade da soberba também não impede Segneri de notar seu aspecto espiritualíssimo, desvinculado de objetos externos específicos e capaz de se ocultar mesmo entre as boas obras. Como perceber a vaidade oculta naquele que faz o bem? Por isso, Segneri recomenda uma ativa terapia que não cuide apenas das manifestações externas da soberba (in verbo), mas de sua sensação íntima (in sensu). A terapia imposta por Deus seria ainda mais severa: o soberbo recairia no pecado mais revelador de sua estupidez. Esta é sua humilhação: imaginando-se superior entre os homens, já seria objeto de ridículo ou piedade.

A surpreendente punição de uma soberba secreta fascina a religião ortodoxa, sempre suspeita de glórias temporais. Em seu romance Os Irmãos Karamazov, Dostoiévski apresenta um sombrio episódio do funeral do starets Zosima. Líder espiritual de uma espécie de convento, considerado homem santo em sua vida, adorado pelos fiéis. Zosima falece e todos esperam alguma manifestação de Deus em seus funerais. Subitamente, seu cadáver, exposto à visitação, começa a feder de forma repelente e escandalosa. Seria uma punição de Deus a um soberbo oculto? Um aviso aos que celebram a carne de um homem? Dostoiévski não resolve o enigma, apenas o apresenta.



Alfred Eisenstaedt (1898-1995). Monge de um monastério da Tessália

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Superbiam numquam in tuo sensu

Considera come nella superbia, ch'è um disordinato appetito di maggioranza, hebbe veramente principio ogni perdizione: perchè doppia è stata la perdizione del Mondo. Uma veio do Anjo; outra veio de Adão: ambas derivam da soberba. Quanto é de temer! Cresce nas plantas nobres e nas vis. Considera no que consiste a transgressão dos limites - do Anjo e de Adão. Um queria comandar as estrelas; outro conhecer do bem e do mal. Vê quanto importa saber se conter dentro dos limites fixados pelo Senhor. Considera quão foi horrível a punição, a queda dos anjos. Se um Monarca fizesse executar em praça pública uma centena de nobres personagens, Marqueses, Marechais, Duques a ele caríssimos que dirias tu? Não dirias insuportável o delito por eles cometido? E não foi assim o que se passou com os anjos? Considera o cúmulo de males que recaiu sobre os filhos de Adão. Que torrente pode ter causado tal coisa? Foi a soberba.

Considera, contudo, a diferença entre a soberba in sensu et in verbo. Mantém distância de ambas e mais da primeira porque dela procede a segunda. Considera que sendo a soberba pecado espiritualíssimo tanto é mais fácil se ocultar como áspide maliciosa entre as boas obras. Queres tu saber quanto Deus a odeia? Nessun Medico savio, affine di curare un infermo periculoso permette ch'egli mai cada in un altro male se non à molto minore di quel que pate. E pure Iddio per curar un superbo, lascia che più volte precipiti in quei peccati che mostrano chiaramente la lor brutezza, e così lo umilia.

(marzo xiv, Superbiam numquam in tuo sensu, aut in tuo verbo, Tobias 4. 14)

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

In unde de lumina cu zefiri a'nota

Apontar os rios como uma imagem da mudança nas coisas humanas é um gesto clássico, mas Segneri, em sua nota, lhe agrega um significado de ordem moral. A transitoriedade não é apenas um problema para a teoria do conhecimento, mas para a consideração dos assuntos humanos. É a mesma observação do poeta japonês Kamo no Chomei (1153-1216) em seu ensaio "Sobre minha pequena cabana". Assim ele começa:

Ainda que a corrente do rio nunca se interrompa, as águas que passam, momento a momento, nunca são as mesmas. Onde a corrente forma remansos, bolhas vêm à superfície, se desfazem e desaparecem, dando lugar a outas. Nenhuma dura muito. Nesse mundo, as pessoas e suas casas são assim, sempre em mudança [1]

Nem é claro para mim, enquanto as pessoas nascem e morrem, de onde elas vêm e para onde vão. Nem porque sendo tão efêmeras nesse mundo, têm tal cuidado em fazer suas casas agradáveis aos olhos. O dono e a casa competem em sua transitoriedade: ambos hão de perecer como a glória da manhã em seu orvalho. Por vezes, o orvalho evapora primeiro, enquanto permanecem as flores, somente para fenecer sob o sol da manhã. Por vezes, fenecem antes mesmo do orvalho e ninguém espera que este dure até a noite. [3].

Tradução da tradução de Robert Lawson, Washburn University:

http://www.washburn.edu/reference/bridge24/Hojoki.html


Lua de outono sobre o rio Tama. Ando Hiroshige (1797-1858).

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Ce inimile léga lantul suffletesc

O movimento socialista foi o mais importante fator, nos últimos cento e cinquenta anos, na desaparição da interpretação moral do infortúnio. A proclamação iluminista de que a felicidade terrena é a única felicidade levou à conclusão socialista de que todo infortúnio tem razões materiais, resulta da apropriação feudal ou capitalista e deve fundamentar a revolta do indivíduo. Qualquer resignação com o infortúnio não passa de resignação diante da injustiça de classe. Um poeta socialista, Louis Aragon, chegou mesmo a afirmar que, sob o socialismo, não haveria atropelamentos.

Não é preciso notar a triste ironia embutida na realidade da promessa socialista, mas cento e cinquenta anos de conflito com o capitalismo forçou este último, por razões eleitorais, a confessar a mesma proclamação iluminista. Nenhuma autoridade política ocupará a tribuna para recomendar aos eleitores que aprendam moralmente com tragédias e infortúnios. Mesmo que o Estado não tenha a menor condição de remediá-los ou evitá-los. Apenas em breves momentos, diante das agruras da guerra e da privação, uma liderança política será forçada a reconhecer que só tem sangue, suor e lágrimas em sua plataforma de governo. Nos últimos anos, a mera sugestão de alguma temperança sexual para enfrentar uma mortal epidemia de DST era reprovada como demonstração de reacionarismo religioso.

A hipocrisia última da modernidade, em matéria de infortúnio, mal se compara com a outra face da moeda proposta por Segneri. Sem condições de oferecer a provisão adequada dos bens desse mundo a todos, a modernidade se conforma em proclamar todos os dias a excelência de meros consolos midiáticos. Em um tempo que se recusa à consideração moral do sofrimento, resta apenas o consumo crescente de tranquilizantes, anti-depressivos e remédios para úlcera.