quarta-feira, 24 de junho de 2009

E que dirai eu plus ab tan?

Não é necessário insistir sobre os paradoxos da condenação eterna e a duração do inferno já foi examinada com rigor por um célebre escritor argentino. Ao menos Orígenes descreu da punição sem fim como obra de um Deus do amor. O Judaísmo, por conta de sua longa convivência com o Senhor, prefere enfatizar o prêmio dos eleitos e dos justos. Está em Daniel 12, 2: "E muitos do que dormem no pó da Terra ressuscitarão, uns para a vida eterna e outros para vergonha e desprezo eterno". Há uma sugestão de que estar longe de Deus é castigo suficiente. A prédica de Paolo merece, pois, maior atenção por sua descrição detalhada dos suplícios e sofrimentos do Inferno, que, como tudo, teriam sido criados por Deus.

Chagas, úlceras, doenças são materiais comuns na Escritura, sinais da punição divina ainda na Terra. Jó limpava suas feridas com um caco de telha (Jó 2, 8). Já outras formas de tortura, como afogamentos e o uso do fogo ou da água fervente, fazem parte do arsenal punitivo do Antigo Regime, cujos instrumentos de tortura compõem hoje as mais variadas fantasias cinematográficas. As punições medievais, contudo, são muito recentes em termos históricos, datam dos inícios da organização do Estado na Europa. Não podem estar na origem das sugestões estranhamente sádicas dos primeiros textos cristãos ou das terríveis sugestões contidas nos Evangelhos: E o Diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e de enxofre, onde está a Besta e o Falso Profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre (Apocalipse 20, 1) E aquele que não foi achado escrito no livro da vida foi lançado no lago de fogo (Apocalipse 20, 15).

Parece existir apenas uma conexão contemporânea possível com as torturas eternas infligidas aos condenados por Deus: a execução dos condenados à morte nos anfiteatros romanos. O texto de Paolo traz à mente os bestiarii descritos por Roland Auguet em Cruauté et Civilisation. Les Jeux Romans. Eles eram os condenados a morte pelas cortes de justiça e literalmente oferecidos às feras. Isso quando não eram submetidos a torturas-espetáculo: morrer como Hércules, com uma túnica flamejante, por exemplo.

Como lembra Auguet, essas execuções, sem glória, sem combate, amparadas pela lei, eram oferecidas como intermezzo e não despertavam maior interesse do público. Por isso, aliás, os crescentes recursos teatrais empregados nesse tipo de execução.

Para a opinião moderna, o espetáculo de um condenado à morte pelo sistema judicial ordinário sendo executado com requintes cenográficos de tortura é certamente muito mais chocante e bizarro do que o combate de gladiadores. Talvez nada de mais assustador existisse também para os homems do primeiro século que, quando buscavam um exemplo do castigo exemplar que esperava os condenados por Deus, apenas apontavam para o espetáculo brutal da lei e do anfiteatro romano.

Paolo certamente não estava consciente da possibilidade de tal conexão, nem do caráter problemático da associação entre Deus e tais castigos e torturas romanas.


Bestiarii. Mosaico da cidade de Zliten, Museu de Trípoli.

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