segunda-feira, 3 de agosto de 2009

le donzellet ac tant plorat


As palavras de Segneri são fortes. A crucificação é uma suma nudez, uma suma dor, um sumo desprezo. Invoca, ao final, a figura de Santo Inácio de Antioquia (67-110), célebre por sua franca disposição ao martírio, consumado com o habitual terror: devorado por leões no Coliseu, sob o reinado do Imperador Trajano. A discussão sobre a autoria das cartas a ele atribuídas é infindável; não há dúvida, contudo, sobre o seu martírio e suas relíquias estão hoje guardadas no Vaticano. Ao menos, os ossos que restaram.

O martírio é algo repugnante para a sensibilidade moderna, que lhe atribui o estigma da ignorância e do fanatismo. O heroísmo na morte do soldado, do líder político e do cidadão comum é celebrado apenas ao ser enquadrado em um cálculo racional, ainda que concluído de forma funesta. A busca da morte pela morte, em nome de uma causa, é vista como um gesto bizarro e estrangeiro, como os monges orientais ateando fogo às vestes diante das câmeras de televisão no curso da guerra do Vietnã.

Os estudos científicos tendem, contudo, a refutar essa visão. A psicóloga Rona M. Fields em "The Psychology and Sociology of Martyrdom", um dos capítulos de Martyrdom: The Psychology, Theology, and Politics of Self-Sacrifice (edição Praeger, 2004) afirma, após estudar centenas de entrevistas com militantes religiosos radicais e pessoas que viveram experiências excepcionais de sofrimento ou tortura, que a jusificação do martírio pessoal é fruto de um longo processo de elaboração mental. As conexões que estabelece com a fisiologia da mente podem parecer exageradas, mas um fato é inegável: a disposição para o sacrifício pessoal não é um estado mental associado com indivíduos necessariamente violentos ou simplórios.

Ela poderia ter mesmo ensaiado uma conexão com as teorias da psicologia evolucionária: o sacrifício altruísta é um elemento importante na sobrevivência de espécies sociais. Não é surpreendente que seres humanos decidam morrer pelo bem da espécie em geral e não apenas para defender sua prole ou clã.

Rona Fields, contudo, nota outros aspectos do martírio, bem mais perturbadores. A sensação do ganho coletivo ou individual do martírio estaria associado ao seu caráter público. O evento assombroso ou macabro precisa servir de exemplo, precisa alimentar uma legenda. Um martírio secreto teria escasso poder atrativo para o crente ou o militante. Morrer por nada - este seria o terror.

Disse perturbador porque, como lembra um livro recente de Donald Kyle, Spetacles of Death in Ancient Rome (Routledge, 1988), a morte pública, do gladiador ou do condenado, era um espetáculo intencionalmente artístico. Não se tratava de uma execução, no sentido moderno do termo, a fria objetividade da forca e do pelotão de fuzilamento. A morte do Coliseu deveria divertir, instruir, ser criativa.

Quando um cristão, como Santo Inácio de Antioquia, se oferecia ao martírio estava plenamente consciente do que o esperava: uma morte pública e espetacular, capaz de se oferecer à memória dos séculos. Se tivesse permanecido na condição de terceiro bispo de Antioquia, morrendo obscuramente de alguma doença infecciosa, seria hoje uma mera nota na Coleção Migne. Morrendo devorado por leões em uma arena romana, pode surgir a qualquer momento, no cinema e na televisão. Por sinal, mesmo na condição de encenações, sem mortes reais, com leões treinados, continuam sendo espetáculos, imediatamente compreensíveis para os espectadores de Roma ou de hoje.

O mártir cristão sempre soube que a única utilidade real do Mundo é oferecer um lugar para o espetáculo de sua Cruz. Uma sociedade do espetáculo, como é a nossa, oferece, como Roma, o palco perfeito para o martírio.

(Imagem: O martírio de Santo Inácio de Antioquia, gravura medieval)

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