sexta-feira, 25 de março de 2011

O! câte lupte, câte suspine

A idéia de que nosso corpo pertence ao Criador, que por ele pagou com seu sangue, e que deve ser destinado a um objetivo espiritual superior soa claramente hostil para uma mentalidade moderna. Na verdade, mesmo o cuidado com o corpo para conquistar uma vida saudável perdeu sua centralidade nos dias que vão. A obesidade tornou-se uma endemia mesmo em países de renda média e há tempos as cirurgias plásticas, de caráter cosmético, passaram a representar uma fração importante da atividade médica no Brasil e no mundo. Poderia mesmo parecer que o corpo humano foi transformado em mero objeto, em instrumento a ser usado com base em critérios utilitários. Nem isso, contudo, é completamente correto.

A realização de transplantes - um fato distante do horizonte mental dos tempos de Segneri - poderia comprovar uma face positiva dessa realidade. Sendo estritamente nosso, poderíamos abrir mão de nosso corpo quando este não mais fosse útil - na morte. Curiosamente, essa consideração utilitária não pesa sobre a doação de órgãos. Qualquer estatística sobre o tema, mesmo em sociedades tecnologicamente capazes de aproveitar a generosidade de um doador, mostra um difícil cenário.

Basta conferir os números oferecidos por http://www.donatelifeny.org/about-donation/data/. Nos Estados Unidos, mais de 110 mil pessoas esperavam por doações de órgãos como corações, rins, pâncreas, pulmões, fígados e intestinos.  Por ano, de todas as causas, falecem nos Estados Unidos cerca de 2,5 milhões de pessoas. Mais de 120 mil pessoas morrem de acidentes. Ainda assim, em 2009, houve apenas 8 mil doadores falecidos naquele país.

Na verdade, o número de doadores mostra-se estável na primeira década do século XXI:




O panorama não é diferente em outros países. Na Inglaterra, com população menor, houve 2 mil doadores falecidos em 2009 para um número de mortes em torno de 500 mil. Campanhas permanentes de saúde pública pedem o registro como doador de órgãos, mas o deficit é permanente.

É como se, subitamente, no momento da morte, a idéia pragmática do uso do corpo fosse substítuída por um preconceito religioso, fundamentado na idéia da santidade do corpo. Na verdade, quase todas as religiões oficiais, como alerta o sítio acima citado, apoiam a doação de órgãos. O estabelecimento de alguma forma de doação compulsória, por sua vez, é impensável em uma sociedade democrática.

Este cenário causaria espanto a Paolo Segneri: não queres dar seu corpo nem a Cristo, nem a seu semelhante? Preferes que vermes o comam? O que será de tua alma, perguntaria o jesuíta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário