terça-feira, 14 de julho de 2009

Doas ymages ben formadas


A existência de fiéis capazes de abusar da paciência do Confessor, mostrando mais disposição para narrar suas desventuras reais ou imaginadas do que para endireitar suas veredas, em pleno século da Contra Reforma, na Itália, confirma a curiosa ambiguidade do sacramento. As tradições judaicas reservam a confissão dos pecados para o diálogo silencioso com o Senhor; o Cristianismo a trouxe para a turbulência da comunicação entre os homens. A confissão perturba, atiça e desconcerta.

O sacramento, em si mesmo, é psicologicamente consistente. É grande, por exemplo, o número de crimes resolvidos por meio da confissão obtida pela leve pressão das evidências. Muitos criminosos preferem justificar seus atos do que conviver com os meandros insondáveis da mentira. No plano da conduta pessoal, certos atos completam seu efeito sobre o autor apenas com a confissão, mais ou menos reservada. No fundo, é mais um rito católico cuja mistura de verdade humana e espetáculo social fascina a modernidade. Há toda uma indústria acadêmica, florescente na França e outras regiões de cultura latina, voltada para as delícias sexuais da confissão dos pecados. Muita metafísica vem sendo construída, na verdade, sobre triviais realidades humanas.

O problema real, como notou Paolo, está no Confessor, não em quem confessa. É sobre ele que pesam as escolhas morais mais graves: a responsabilidade pelo segredo, a decisão sobre a sinceridade de quem confessa, a compreensão sobre a natureza do ato confessado e a escolha da penitência. Sem falar, naturalmente, sobre a cenografia da confissão, preservada sempre que possível do olhar do vulgo.

Tome-se o caso notável de Mockaitis vs Harcleroad, decidido pelo U.S. 9th Circuit Court of Appeals em 27 de janeiro de 1997.

Timothy Mockaitis é um padre da diocese de Portland, no Oregon, que ouvia confissões de presos pela polícia local. Dentre estas, a de Conan Wayne Hale, acusado, junto com outro indivíduo, do assassinato de três adolescentes: sua ex-namorada, o então namorado dela e mais outro rapaz que por acaso estava com ambos. O procurador Douglas Harcleroad procurava definir a participação de Hale nos assassinatos e, assim, decidir se pedia a pena de morte. Tendo conhecimento das atividades do padre Mockaitis, ordenou aos responsáveis pela cadeia do Condado de Lane que gravassem a confissão. Todas as conversas de Wayne Hale, por sinal, eram mantidas por meio da parede de vidro e quase a totalidade era monitorada.

O procurador obteve sua gravação, mas Hale não admitiu, em sua confissão, ter assassinado os adolescentes, atribuindo a culpa ao cúmplice e admitindo perante o padre apenas a culpa pelo ódio que dele sentia. Nesse ponto, o padre Mockaitis e a diocese de Portland entraram na Justiça Federal, alegando violação da Quarta Emenda, da Lei de Proteção da Liberdade de Religião e da legislação referente à escuta telefônica.

O procurador Harcleroad venceu na primeira instância e mais: conseguiu demonstrar perante a corte que o réu, Wayne Hale, tinha a certeza de que sua confissão seria gravada. Por isso, não admitiu qualquer envolvimento nos assassinatos e, supreendentemente, permitiu a divulgação da confissão. Uma das únicas dispensas aceitáveis, perante o Direito Canônico, do "selo da confissão". Qualquer observador imparcial diria que Hale manipulou a boa fé de seu Confessor, certo de que o procurador não respeitaria o segredo do Sacramento. O padre Mockaitis era, de fato, a grande vítima de todos os atos praticados e buscou reparação na Corte de Apelos.

A erudita decisão do Juiz John T. Noonan, indicado pelo presidente Reagan, revela que não havia precedente conhecido para a violação do Sacramento da Confissão por razões judiciais e determina a reversão do veredicto da corte de primeira instância. Textualmente:

"The Remedies. We remand for a grant of the plaintiffs' request for declaratory relief, holding that the taping of Father Mockaitis's encounter with Hale and its subsequent seizure by Harcleroad violated RFRA and the Fourth Amendment. We remand to the district court for the issuance of an injunction in favor of Father Mockaitis and Archbishop George. The injunction may be tailored to fit the expectation of clergy under ORS Evidence Code, Rule 506 and so should restrain Harcleroad and his agents and employees from further violation of RFRA and the Fourth Amendment by assisting, participating in or using any recording of a confidential communications from inmates of the Lane County Jail to any member of the clergy in the member's professional character."

Curiosamente, a decisão judicial pouco alterou a configuração do caso. A confissão de Hale seguiu de domínio público, sem ajudar sua situação, pois a evidência não foi reconhecida, de acordo com as leis do estado de Oregon. O padre Mockaitis obteve, contudo, o reconhecimento da proteção judicial do Sacramento da Confissão tanto pela autoridade da Quarta Emenda, quanto pela lei de Restauração da Liberdade de Religião.

Hale, um assasino frio, que mereceu até mesmo a revolta do juiz que decidiu o caso, foi condenado à morte:

"Conan Wayne Hale Inmate number: 11405546
Born: 28/12/1975 Place of birth: Eugene, Oregon
Crime: Aggravated murder
On death row since: 28/05/1998
Sentence: Death by lethal injection
Date of Sentence: 25/05/1998"

São João Nepomuceno (1345-1393) não teve a mesma sorte do padre Mockaitis. Detentor de segredos confessionais da rainha da Boêmia, não os quis revelar a Venceslau, rei dos Romanos e da Boêmia. Foi jogado no Moldava e afogou-se. É considerado o primeiro mártir do segredo da Confissão.

(Imagem: José Campeche Jordan. São João Nepomuceno, cerca de 1798).

2 comentários:

  1. É interessante essa alteração do sentido da confissão. O que antes era fruto de profundo recolhimento e contrinção solitária, torna-se algo como a paga de um tributo. Faz-se, muitas vezes, relutante e levianamente, como quem exonera-se formalmente de uma obrigação. As implicações mais sérias, entretanto, são mesmo referentes ao confessor. Abre-se todo um outro universo moral para o confessor, que pode, por exemplo, ver-se enredar maliciosamente no pecado alheio, ou er-se assombrado pelo peso de um segredo terrível. E veja que esse problema é multiplicado por mil se levermos em conta uma das piores e mais amplamente difundidas aberrações teológicas protestantes moderna; a interpretação literal do texto de Tiago 5:16. Os crentes são levados a confessar publicamente seus podres não diante do sacerdote, no sigilo do confessionário, mas de púlpito, em "praça pública", como requisito indispensável de uma pretensa "cura espiritual". Fico a imaginar um pedófilo estimulado a contar seus desvios para a sacrossanta platéia de um templo urbano no centrão de São Paulo...

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  2. Depois de escrever esse texto, segui exatamente a sua reflexão. O problema da confissão é sobretudo o problema do confessor. Ele sempre corre o risco de ser tragado pelos paradoxos do Mal. A teologia protestante não viu essa realidade: a função do pastor é receber o peso do pecado em segredo, não curá-lo em uma catarse.

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