quarta-feira, 8 de julho de 2009

qu'eu sonarai per vos matinas

A duração do Inferno representa um clássico problema teológico, mas é notável que Paolo Segneri examine também a natureza da beatitude. Não recua sequer diante da possibilidade do tédio (usa literalmente a palavra) e não incorre nos paradoxos da comparação com os prazeres sensuais da Terra a não ser em um caso: a experiência musical. Cantar para o Senhor uma nova canção - assim viu João a ventura eterna.

Condenada ou beatífica, a existência individual no além mundo não enfrentava ainda as dificuldades implícitas na crítica das noções cartesianas relativas à coerência do ego. Nesse plano de análise, os problemas nem chegam a ser as dificuldades associadas à definição empírica da mente humana, registradas já ao final do século XVIII. Os desafios postos pelo estudo da fisiologia do cérebro são muito mais profundos, ao questionarem mesmo a solução iluminista: não existe seguer garantia de uma unidade subjetiva da percepção do mundo externo. Um bom resumo desses graves problemas está no capítulo 12 de Reasons and Persons, publicado pelo filósofo Derek Parfit em 1984. Dois deles interessam aqui: (1) manipulações cirúrgicas do cérebro podem produzir duas unidades subjetivas distintas para percepções externas; (2) a mera aplicação de um paradigma relativístico aos eventos mentais basta para defini-los em função de um rede de relações e não de um substrato psico-físico.

Não é difícil estabelecer a conexão desses problemas com os desafios assumidos por Paolo: a duração do Inferno e a natureza da beatitude. Quanto mais incerta a definição de uma alma individual, mas incerta será a compreensão de sua capacidade de vivenciar um tormento eterno ou uma eterna exaltação.

Por sua vez, o argumento confessional poderia perfeitamente inverter o paradoxo e justamente postular que nossa existência fragmentária e caótica na Terra é um efeito da atual junção com o corpo material. Esse dualismo - cujos paradoxos são devidamente registrados por Parfit ou Dennett - seria precisamente superado pela Morte. A alma existiria, na acepção correta no termo, em sua unidade fundamental, apenas no além mundo. No aquém, seria o que conhecemos: um frágil colcha de retalhos.




(Imagem: cena de Matrix (1999): Morpheus oferece a Neo duas versões da realidade)

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