segunda-feira, 6 de julho de 2009

Domnas aurellas, tort n'aves


Henry Wace (1836-1924), em seu clássico Dictionary of Christian Biography and Literature to the End of the Sixth Century A.D, with an Account of the Principal Sects and Heresies, anota os tropos tradicionais da biografia de São João Crisóstomo (347-407), inclusive a falta de informação precisa sobre a origem de seu magnífico apodo - boca de ouro, a admiração de seu mestre de retórica, Libânio, o confidente do Imperador Juliano, e as dúvidas morais de que padecia no exercício da profissão de advogado – defender como certo o que era errado e ser pago por isso.

Ironicamente, seu sucesso nas cortes de justiça terminou provocando uma séria crise de consciência e sua conversão ao cristianismo aos 23 anos de idade. Mesmo no caminho da santidade, porém, os hábitos de brilhante advogado não abandonaram João de uma hora para outra. Sem disposição para abandonar sua querida mãe, praticava o ascetismo sem deixar sua casa em favor de um mosteiro e não se furtou a uma desculpa moralmente duvidosa para justificar o artifício usado para fazer de seu amigo Basílio o bispo de Antioquia.

Apenas em 374 deixaria a vida civil para a austeridade solitária do monasticismo oriental. Logo em 381, contudo, Crisóstomo retorna a Antioquia para uma rápida e brilhante eclesiástica, muito ajudada, certamente, pelo seu papel decisivo em evitar uma punição rigorosa do Imperador Teodósio por conta do motim causado por uma demanda de impostos. Em 397, o Imperador Arcádio, impressionado pelas homilias de Crisóstomo, evitou os candidatos da capital e fez do orador o bispo de Constantinopla.

Na condução de seu apostolado, Crisóstomo decidiu seguir o espírito prático e direto de suas prédicas. Dispensou a pompa do cargo, obrigou os sacerdotes a oferecer serviços religiosos noturnos, ocupou-se dos pobres e dos desvalidos. Do púlpito verberava com brilho e entusiasmo os excessos e a luxúria da nobreza da capital do Império.

Por um tempo, as façanhas do bispo de Constantinopla impressionaram a Imperatriz Eudóxia, mas seu zelo e suas homilias logo passaram a irritá-la. Uma confusa sequência de cabalas – confusa pela necessidade de evitar a fúria da plebe da capital – levou à decretação de seu exílio em Hieron, na boca do Euxino. Um terremoto ocorrido na mesma noite de sua partida provoca, contudo, o temor e o remorso de Eudóxia, que obtém de seu marido o retorno triunfal de Crisóstomo.

As reviravoltas do destino não aumentaram a prudência do bispo de Constantinopla. Na descrição de Wace: “Em dois meses, circunstâncias emergiram provando a irrealidade da amizade e despertaram uma disputa ainda mais incociliável. Eudóxia aspirava a honras semi-divinas. Uma coluna de pórfiro foi erguida no fórum menor, diante da Igreja de Santa Sofia, trazendo no seu topo uma estátua de prata da Imperatriz, para a adoração do povo. Sua inauguração, em setembro de 403, foi acompanhada por licenciosos e barulhentos festejos. O ruído do descabido divertimento chegou à Igreja e perturbou o ofício divino. A santa indignação de Crisóstomo inflamou-se e ele subiu ao púlpito para trovejar uma homilia, unindo em suas invectivas todos os que partilhavam de divertimentos profanos e, sobretudo, aquela arrogante mulher cuja ambição estava na sua origem. “Herodias (assim foi dito a Eudóxia) está novamente enlouquecida; Herodias novamente está dançando; mais uma vez Herodias quer a cabeça de João em uma bandeja”.

João Crisóstomo cometeu um erro comum em pessoas inteligentes: usou seu brilho e seu gênio para tripudiar sobre um adversário. No caso, uma mulher poderosa. Eudóxia, enfurecida, retomou as cabalas, novamente confusas e violentas. Apenas em 405, após uma série de sínodos, deposições e motins, o Imperador Arcádio determinou seu exílio, dessa vez nas fronteiras do império, em Cucusus, na fronteira da Cilícia com a Armênia Inferior.

Curiosamente, Crisóstomo resiste aos rigores do clima, aos bárbaros da Isáuria e torna-se o centro das atenções de todo império. Eudóxia falece, mas seus inimigos obtém do Imperador sua transferência para uma cidade ainda mais inclemente, Pytus, ao pé do Cáucaso. A viagem, em condições deliberadamente brutais, termina provocando sua morte em 407, em Comona, aos 60 anos de idade.

Termina Wace: “It is not surprising that he was thought morose and ungenial and was unpopular with the upper classes. His strength of will, manly independence, and dauntless courage were united with an inflexibility of purpose, a want of consideration for the weaknesses of others, and an impatience at their inability to accept his high standard, which rendered him harsh and unconciliatory. Intolerant of evil in himself, he had little tolerance for it in other men. His feebleness of stomach produced an irritability of temper, which sometimes led to violent outbursts of anger. He was accused of being arrogant and passionate. He was easily offended and too ready to credit evil of those whom he disliked. Not mixing with the world himself, he was too dependent on the reports of his friends, who, as in the case of Serapion, sometimes abused his confidence to their own purposes. But however austere and reserved to the worldly and luxurious, he was ever loving and genial to his chosen associates. In their company his natural playfulness and amiability was shewn, and perhaps few ever exercised a more powerful influence over the hearts and affections of the holiest and most exalted natures. His character is well summed up by Dr. Newman—"a bright, cheerful, gentle soul," his unrivalled charm "lying in his singleness of purpose, his fixed grasp of his aim, his noble earnestness; he was indeed a man to make both friends and enemies, to inspire affection and kindle resentment; but his friends loved him with a love 'stronger' than 'death,' and his enemies hated him with a hatred more burning than 'hell,' and it was well to be so hated, if he was so beloved."


(Imagem: mulher beija o crânio de São João Crisóstomo em uma Igreja Ortodoxa dedicada ao santo em Lakatamia, um subúrbio de Nicosia, Chipre, 13 de novembro de 2007.)

Nota: os restos de São João Crisóstomo foram trazidos a Constantinopla em 438, no reinado de Teodósio II. Roubados pelos cruzados que saquearam Constantinopla em 1204, foram levados a Roma. João Paulo II devolveu as relíquias à Igreja Ortodoxa em novembro de 2004 e eles são hoje mantidos no Monte Athos. Sua língua está calada, mas sua cabeça continua produzindo milagres.

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