sábado, 15 de agosto de 2009

Car Amors vens los venzedors

Para sustentar a afirmação ousada de que cada um é aquilo que ama - seja o Bem, seja o Pecado -, usa uma direta citação de Santo Agostinho. Está no comentário sobre a Epístola de João: Quia talis est quisque, qualis eius dilecto est (2.14.5). Cada um é tal como é seu deleite. A frase é problemática: alude à dissolução das fronteiras entre o Homem e Deus. Precisa ser explicada em seu evidente platonismo.

O emprego da expressão latina em um mecanismo de busca na internet revela a pertinência imediata da preocupação. Nos tempos que vão, poucas coisas parecem vedadas ao Homem, entre elas a aspiração à divindade. Segneri, talvez sem refletir, abraçou um caminho teológico perigoso, merecedor de comentário. É o que faz o também jesuíta David Vincent Meconi, em um cuidadoso artigo publicado ainda no ano passado: “Becoming Gods by becoming God’s: Augustine’s mystagogy of Identification”. Augustinian Studies 39:1 (2008), 61-74.

Começa Meconi: “Mas o que está implícito em tal identificação? Como podem os crentes se tornar os objetos que encontram na narrativa cristã? Este ensaio sustenta que a insistência de Agostinho para que os fiéis se tornem coisas de Deus é motivada por três convicções centrais. Primeira, a natureza icônica do cosmos. O mundo visível é sinal e manifestação de seu criador invisível. Segunda, a concepção de Agostinho do papel e propósito dos sinais que contêm e indicam realidades mais altas. Ele sabia como Deus educava seu povo por meio de coisas visíveis para que melhor aprendessem as invisíveis. Terceira, a teoria que chamarei de diligência simpática, a profunda apreciação de Agostinho do poder do amor em transformar o amante naquilo que ele contempla. Para concluir, este ensaio levanta o freqüentemente esquecido coração da soteriologia de Agostinho – a humanidade se tornando deuses." (pág 63).

Meconi não se preocupa em questionar a origem platônica dessa idéia, as teorias do amor e do conhecimento expostas, por exemplo, no Banquete. Limita-se a descrever a adaptação cristã conduzida por Agostinho:

"Neste ensaio, vimos como os símbolos religiosos são usados por Agostinho para chamar os crentes mais intimamente à vida divina. A liturgia se torna, assim, o locus deificandi, o lugar onde o drama da salvação humana é não apenas revivido, mas efetivado. Cercado pelo templo do louvor e tudo o que há em seu interior, as pessoas devem contemplar como Deus demanda que se tornem seus sinais vivos. Ouro, óleo, árvores, o altar do sacrifício, o Sabá e o canto dos cristãos são todos constituídos para cultivar a vida plena dos que são batizados e para chamá-los a uma união mais próxima com o divino, tornando-se deuses por se tornarem de Deus” (pág 74).

Em sua conclusão, o jesuíta Meconi usa, então, precisamente a citação do comentário de Agostinho e registra que no seu parágrafo 48 o Segundo Concílio Vaticano adota a mesma retórica, pedindo a participação ativa dos fiéis.

Não se trata, aqui, de uma vã sutileza. Segneri e Meconi desmentem, na aceitação tácita da idéia platônica, um cristinismo baseado na negação das coisas belas desse Mundo. Onde há beleza, há um caminho para Deus, sugeriu o filosófo ateniense e concordou o bispo de Hipona. Os dois jesuítas fazem apenas um comentário tardio.

2 comentários:

  1. Um santo que utiliza esse argumento agostiniano é São João da Cruz.Ele sempre escreve sobre a "alma enamorada de Deus". Eis um trecho da "Subida do Monte Carmelo":
    "...o afeto e o apego da alma à criatura a torna semelhante a esta criatura. Quanto maior a afeição, maior a identidade e semelhança, porque é próprio do amor fazer o que ama semelhante ao amado..." ou ainda:
    "amar a Deus é despojar-se por Deus de tudo o que não é Deus."
    É interessante a biografia deste santo, e sua doutrina sempre me fascinou, por ter uma lógica pétrea...

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  2. Vou examinar essa conexão em uma nota específica.

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