segunda-feira, 18 de julho de 2011

Cât sânge aste locuri setóse îngitira

Não é fácil resumir todas as implicações da comparação feita por Segneri entre a modéstia exigida daqueles que servem a Deus e o exemplo de São José, santo comemorado no dia 19 de março.

A hagiologia empregada no texto, por exemplo, é surpreendentemente precisa. A figura de São José, de fato, permaneceu ausente do culto católico por séculos, uma situação descrita de forma dramática por Sandra Miesel: “Imagine um mundo onde nenhum cristão recebe o nome de José, onde nenhuma igreja ou organização religiosa traz seu nome. Imagina São José ausente da Missa, do Breviário, do Calendário da Igreja e da Litania dos Santos. Nenhum sítio sagrado, nenhuma devoção especial, nenhum hino, nenhuma imagem própria, nenhum costume popular, nenhuma refeição festiva faz homenagem a São José. O mundo sem São José foi a Cristandade até o século XIV. Até esse ponto, São José foi completamente ignorado, reduzido a um carregador de estandarte no cortejo da Salvação” (Sandra Miesel. “Encontrando São José”, em CatholicCulture.org, 2002).

Por outro lado, Segneri omite cautelosamente as razões desse esquecimento. Ele nada teve a ver com alguma modéstia pessoal ou com uma reflexão moral sobre sua figura. Trata-se de uma conseqüência teológica inevitável da Encarnação, agravada pela rápida emergência do culto de Maria como a mãe de Deus. A necessidade de defender sua pureza fundamental deixava o seu casamento terreno em dúvida, uma vez que a lei judaica, por exemplo, não reconhece a validade de casamentos não consumados. Para complicar o cenário, era a lei romana que reconhecia o casamento meramente legal e a regular adoção dos filhos de terceiros, fonte de intermináveis abusos.

Não foi à toa, portanto, que a figura de São José feneceu na sombra por séculos. Um levantamento recente de sua imagem em iluminuras medievais mostra que em 10% dos casos as referências são mesmo pouco honrosas, repetindo a figura dos maridos enganados pelos deuses na mitologia grega.

Segneri também não examina em detalhe as razões do renascimento do culto de São José, ainda que, em seu tempo, sua expansão seguisse em ritmo acelerado, e que sua origem pudesse ser datada com precisão: a publicação, por Jean Gerson, das Considerações sobre São José em 1413, e o sermão de 8 de setembro de 1416, Jacob autem genuit Joseph (Mateus I, 16), perante o Concílio de Constança.

Muitas causas podem ser invocadas para tal renascimento. A mais razoável parece ser, contudo, um sentimento global de insegurança provocado pelas imensas crises humanas e políticas da segunda metade do século XIV. Naquele momento, em pleno Grande Cisma, com a Igreja dividida em facções combatentes, invocar o valor e a estabilidade da família exigia um novo tratamento da paternidade temporal. No caso específico, centrada sobre a imagem de São José. (Paul Payan, “Para reencontrar um pai. A promoção do culto de São José no tempo de Gerson”. Cahiers de Recherches Médiévales et Humanistes. 4, 1997).

Nesse ponto, por sinal, a elaboração de Jean Gerson e a menção de Segneri se alinham perfeitamente. O servidor da Igreja deve ser como José: trabalhador, modesto, mais preocupado em praticar o amor e cuidar de quem precisa do que na glória de linhagens ilusórias. Todos, afinal, somos filhos de Deus.



Georges de la Tour (1593-1652). São José Carpinteiro (c. 1640)

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