segunda-feira, 24 de maio de 2010
Panorama de umbre, se 'ntunec se estrecor
"Tormento do ver", gravura incluída em La Prigione Eterna dell’Inferno. Disegnata in immagini et espresso in Essempij al peccatore duro di cuore, de Giovanni Battista Mannini, S.J.,Veneza, 1666.
Especulação que se foi gastando com o tempo, essa do Inferno. Com essa frase, Jorge Luís Borges começa um dos exames mais devastadores dessa venerável instituição teológica. No ensaio "A duração do inferno", publicado em Discussão (1932), ele faz a observação decisiva: é indiscutível um cansaço geral na propaganda desse estabelecimento. A eternidade do Inferno, citando Rothe, seria a eternidade do Mal - um fato dificilmente compatível com a bondade de Deus. Curiosamente, uma das fontes de despretígio do Corão no Ocidente não era seu convencional Inferno, mas seu Paraíso sexual.
Mais interessante, creio eu, do que o gradual desgaste do Inferno, patente ainda em meados do século XIX, é o entusiasmo dos escritores jesuítas com seu uso moral e, portanto, com as descrições detalhadas do estabelecimento. Mesmo Segneri não se furta a reflexões de ordem física sobre a natureza exata do fogo eterno e como compatibilizar a idéia de fogo com a ausência de luz no Inferno. Mesmo a fauna do inferno, composta por insetos repelentes e feras selvagens, é recorrentemente enfatizada. Parece-me inevitável supor que o avanço do conhecimento científico sobre a biologia dos seres vivos e sobre os fenômenos físicos em muito contribuiu para o ceticismo quanto a este Inferno descrito com tanta precisão.
Ao insistir do uso de fenômenos e seres vivos para compor a imagem do Inferno, os autores jesuítas estavam abrindo caminho, na verdade, para sua inverosimelhança futura. Se tivessem enfatizado a natureza moral do castigo imposto por Deus e preferido uma forma literária mais imprecisa, talvez o Inferno tivesse atravessado os séculos em melhor forma. Nos dias que vão, o Vaticano tem grande cuidado quando descreve o Inferno e revela um evidente temor do deboche da mídia.
No fundo, os jesuítas, com sua preocupação constante com a propaganda da fé, terminaram comentendo um erro comum em matéria de marketing e opinião pública. Ficaram presos à visão de apenas um público; quando este desapareceu, o Inferno não estava apenas condenado, estava obsoleto como um telégrafo ou uma máquina de escrever. Como bem notou Borges, foi possível a Baudelaire ansiar pelo Inferno e iniciar uma tradição da arte popular do século XX. Qualquer "conjunto de rock", quando quer elevar as vendas, flerta com o Inferno. Mais uma culpa da ordem de São Inácio.
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